Os mortos dependem inteiramente da nossa fidelidade
“Os mortos dependem inteiramente da nossa fidelidade”
A “autocensura”, como já alguém meu amigo lhe chamou, foi considerada durante muito tempo, se ainda o não é, um dos factores impeditivos do crescimento de um “movimento de cidadãos” em Angola e na Diáspora, que possa conseguir finalmente a clarificação dos chamados “Acontecimentos do 27 de Maio de 1977 em Angola”.
Tem sido assumida por muitos esta autocensura, como factor bloqueador da participação individual num movimento destes, já que, quem participar, terá sempre no momento da decisão que ponderar muito, talvez até abdicar de alguma coisa importante ou mesmo arriscar o seu percurso ao caminhar nessa via. Parece então, que se está sempre a lutar com um “gigante poderoso” que consegue imobilizar a vontade de muitos em se manifestarem, apesar de no seu intimo alguns o desejarem fazer. Passados 30 anos, pergunto-me hoje se o que impede este movimento de crescer, ainda é apenas a “autocensura” ou o “medo”, ou se não estaremos mesmo já em presença da “Infidelidade para com os mortos”.
Muitas pessoas já se sentaram entretanto nestes anos, em momentos vários, para falar sobre o assunto, conjugar esforços, procurar sensibilizar outras e mesmo contagiar autoridades várias, procurar apoios de organizações internacionais, de partidos políticos e ou movimentos de cidadãos, enfim, de todos os homens de boa vontade que existem e que pensam no assunto e que poderão ainda fazer algo para sossegar os familiares das vítimas, repondo a verdade histórica.
Tive sempre a opinião de que os chamados sobreviventes daquele processo, nos quais me incluo, independentemente de hoje serem governantes, políticos no poder ou da oposição, empresários, técnicos, cidadãos simples e anónimos, estejam em Angola ou na Diáspora, deveriam ter uma plataforma mínima de consenso que fosse exequível, e que não conduzisse de forma nenhuma a divisões e constrangimentos, nem a armas de arremesso partidárias. Acreditei até que, o Presidente José Eduardo dos Santos, viesse mesmo a partilhar esses pontos de consenso a bem do Povo Angolano o que não aconteceu até ao momento. Nesse sentido tenho trabalhado como membro da “Associação 27 de Maio” (Associação de Direito Português), tendo nessa qualidade subscrito vários pedidos ao Presidente de Angola, iniciativas essas que foram oportunamente também comunicadas à Embaixada de Angola em Portugal pela referida Associação.
Relembrando, tal “plataforma mínima de consenso”, em cinco pontos apenas, que foi já sugerida a todos os Sobreviventes e às Autoridades Angolanas:
- Permitir o acesso à consulta pública e consequente investigação histórica, de todos os documentos constantes nos processos em arquivo, do MPLA e do Estado (Incluindo os arquivos da extinta DISA), relativos ao processo de 27 de Maio.
- Elaborar um recenseamento de todos os cidadãos detidos, presos e executados no âmbito daquele processo.
- Promover a remoção dos restos mortais das vítimas, em todos os locais já identificados com base em testemunhos conhecidos, procedendo à emissão das respectivas certidões de óbito.
- Proceder a uma política de reparações de todos quantos foram lesados pela actividade ilegal e criminosa do Estado durante aquele processo.
- Construir um Memorial, que honre todos quantos tombaram de forma inglória naqueles trágicos Acontecimentos, independentemente do lado em que se encontravam.
Estou assim, plenamente convicto de que, esta plataforma mínima de consenso é ainda exequível, e que todos os intervenientes neste processo, e apoiantes de uma solução, deveriam pugnar por um “Movimento de Opinião” que conduzisse à sua concretização. Se o fizerem dignificarão a Democracia em Angola e contribuirão decisivamente para serenar os espíritos inquietos com o destino dos seus entes queridos. Afinal de quem poderão depender os mortos senão apenas de nós que nos queremos manter fiéis à sua memória.
Caros Familiares das Vítimas e Sobreviventes, vamos manter a nossa fidelidade lembrando para não esquecer. A memória não é só um direito, é também um dever e como tal devemos exercê-lo.
José Fuso
José Fuso