27 de Maio de 1977: 45 anos passados

A verdade é uma força fortalecedora e curativa, que deve ser celebrada no passado, presente e futuro… …reconhecimento, justiça e prevenção só podem começar com a descoberta e reconhecimento dos factos… …sem verdade, não pode haver justiça ou reparação.” António Guterres, em 24 de Março de 2021, no dia internacional pelo direito à verdade sobre as violações dos Direitos Humanos e pela dignidade das vítimas.

27 de Maio de 1977: 45 anos passados
UMA VERDADE INCÓMODA

Há 45 anos que o 27 de Maio de 1977 é desconsiderado na sua dimensão histórica. Nesse fatídico dia, segundo os vencedores (que depois criaram o MPLA-PT), foram mortos pelos fraccionistas militantes consequentes que defendiam a revolução angolana e a justeza da linha política do camarada Presidente Agostinho Neto. Para outros, os vencidos (um conjunto heterogéneo de militantes, aderentes e simpatizantes do MPLA), houve acções de protesto em resposta ao afastamento de altos dirigentes e a prisões arbitrárias de camaradas seus, desencadeadas pela DISA.

Essas acções desesperadas e mal organizadas tinham como intuito demonstrar ao camarada Presidente Agostinho Neto que ele estava rodeado de traidores da revolução angolana e que aqueles tinham infiltrado o B.P. e C.C. do MPLA ao serviço do imperialismo americano e contra a ajuda do campo socialista, particularmente contra a União Soviética e Cuba, com o propósito de frustrar a luta contra o neocolonialismo.

Muito foi escrito nestes 45 anos sobre os acontecimentos desse dia. Foram apelidados de tentativa de golpe de estado, golpe de estado, manifestações na rádio e no Palácio, libertação popular e armada de presos encarcerados injustamente pela DISA, etc.

Há, no entanto, uma verdade partilhada: Todos queriam o apoio do Presidente Agostinho Neto ou julgavam ir em seu apoio. Todos tinham uma trajectória, maior ou menor, dentro das estruturas do amplo movimento nacionalista, o MPLA, que se levantou contra o colonialismo e que tinha conseguido já realizar o seu programa mínimo com a proclamação da independência Nacional, a 11 de Novembro de 1975.

Assim, na comemoração que se aproxima do centenário do Presidente Agostinho Neto, é importante que esta dimensão do líder seja analisada. Porque queriam todos o apoio de Agostinho Neto? Onde errou o Presidente Agostinho Neto na avaliação dos acontecimentos daquele fatídico dia? Terá sido quando afirmou que os camaradas “revoltosos“, que se desviaram da linha política do MPLA, teriam um longo caminho a percorrer para ser reintegrados nas estruturas do movimento?, ou, pelo contrário, quando deu “luz verde” aos organismos do estado para iniciar uma luta sem tréguas contra aqueles que se revoltaram, agora apelidados de fraccionistas, e a quem, sem qualquer investigação, foi atribuída a morte dos malogrados comandantes no Sambizanga, bem como de muitas pessoas nas palmeirinhas?.

Há, no entanto, uma verdade incómoda: o Presidente Agostinho Neto abriu a porta a uma “caça ao fraccionista“, que durou mais de dois anos e ceifou a vida a milhares de jovens com provas dadas no MPLA.

Há um ano, o Presidente João Lourenço reconheceu a dimensão da barbárie desencadeada a partir daquela data, por mais de dois anos, pronunciando publicamente um pedido de desculpas às vítimas, o que acalentou algumas esperanças, quer aos sobreviventes, que testemunharam e sofreram a repressão durante aquele período, bem como aos órfãos que foram esquecidos por décadas e atirados para a condição de filhos incógnitos ou de filhos de “traidores e assassinos“.

Até mesmo a filha do malogrado Saidy Mingas, reconhecido como herói nacional, cujos restos mortais foram enterrados com honras de estado, não tinha ainda recebido qualquer certidão de óbito do seu pai. Inacreditável.

Quem matou, afinal, os comandantes no Sambizanga? Como escapou o comandante “Gato” e o que contou em vida?

O QUE FICOU POR FAZER?

Para os sobreviventes do massacre, ficou quase tudo. A verdade e a justiça ficaram escondidas mais uma vez. Voltou-se a falar de “golpe de Estado“, recusando usar a expressão “alegada tentativa de golpe de Estado“, ou como no consulado de José Eduardo dos Santos, “acontecimentos do 27 de Maio“, que seriam muito mais adequadas. A Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) finou-se no fim da sua primeira fase num programa de manipulação e branqueamento da verdade, ancorada no lema “abraçar e perdoar“, como se o 27 de Maio de 1977 pudesse ser considerado um caso de fé, ou mesmo resolvido com recurso ao esquecimento.

Ou seja, faltou um processo investigativo e reparativo sólido, segundo preceitos do Direito Internacional, no âmbito de uma Comissão da Verdade que curasse efectivamente as feridas e trouxesse às gerações futuras a verdade da história sem manipulações. Para os órfãos, faltou um processo de exumação dos restos mortais dos seus pais, digno de reparos, que respeitasse o que resta deles, abandonados quase meio século em valas comuns, mas que, finalmente, com exumações credíveis, viessem a saber como morreram os seus entes queridos.

APROPRIAÇÃO DA EFEMÉRIDE

Em 2021, no dia 27 de Maio, houve coroas de flores na estátua do Presidente Agostinho Neto, que ordenou, na altura, a repressão. Coroas de flores em nome de uma reconciliação ainda falhada e mal pensada. Um acto falhado. Em 2022, veremos o que se passará. Outras iniciativas em 2022, sem cariz governamental, “colaram-se” a esta data, fazendo dela um momento para uma reflexão económica do País.

Tal apropriação não pode ser ignorada, pois essa data, a bem da verdade, deveria ser um dia de silêncio em honra dos mártires da revolução Angolana: aqueles que acreditaram ser possível construir uma Angola fora das amarras neocoloniais; que morreram desprezados pela história oficial sem que lhes fosse atribuída qualquer honra ou glória; e que ainda jazem em parte incerta, desaparecidos, como se nunca por cá tivessem passado.

Haja decoro. Respeite-se a memória do 27 de Maio de 1977.

Um povo sem memória é um povo sem rumo certo.

27 de Maio - 45 anos

José Fuso
in Novo Jornal

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