Ademar Valles: Alegria de Viver
Nessa noite, chegou uma brigada da DISA, com uma lista de nomes, para entrarem numa ambulância. Todos sabiam o que aquilo significava. A viagem para a morte, sem julgamento, sem o mínimo direito à defesa.
O Ademar seria assassinado nesse dia.
Os seus verdugos, esses, continuam impunes, enquanto Angola aguarda o dia em que a reconciliação seja possível, com a assumpção de responsabilidades…
O ADEMAR: ALEGRIA DE VIVER
De uma certa forma, não há duas pessoas iguais. Todos somos diferentes, mesmo quando parecemos semelhantes.
De nós os três, dos três irmãos – Edgar Ademar, Sita Maria e Edgar Francisco –, o Ademar era o mais alegre e extrovertido.
Tinha aquilo a que os ingleses chamam “joy of life” (alegria de viver).
Fazia de tudo uma festa. Ate a penúria de alimentos, que existia em Luanda, em 1976, era para ele uma alegria, brincando com os pratos de arroz com arroz, e um cheiro de carne, improvisados pela Fátima, fiel cozinheira que transitou dos meus pais para ele. Era essa alegria de viver e carisma que o tornavam atraente, sobretudo para o sector feminino, em que era imbatível.
Choviam tantos telefonemas para ele que, a determinada altura, me pedia para atender o telefone e para fingir que era ele. Mas, para minha infelicidade, as interlocutoras apercebiam-se do diferente timbre de voz e não aceitavam a troca.
A ADOLESCÊNCIA
Quando chegámos a Luanda, depois do nascimento em Cabinda e passagem por Silva Porto (hoje Bié) e Benguela, o Ademar tinha, em 1961, 11 anos de idade.
Fomos morar para o Bairro dos Serviços de Agricultura, um conjunto de casas dispersas junto aos viveiros dos Serviços de Agricultura e Florestas de Luanda. Por essa razão, também se chamava “Florestas” ou “Barrocas” (pela existência de declives em dois morros).
Havia poucas famílias: os Ceitas, Os Batalhas, os Pompeus… Designávamos os membros de cada família pelo apelido, embora chamássemos cada um pelo seu nome próprio.
Lembro-me do Filomeno Ceita, a quem chamávamos o ” Filó”, e do “Tó” Batalha…
Pela própria natureza do solo, a zona onde vivíamos proporcionava a caça aos pássaros, com espingardas de pressão de ar (as mais conhecidas, de marca “Diana”).
Mas o que mais o agradava eram os jogos de futebol, no campo improvisado junto ás oficinas.
ínhamos uma equipa que era conhecida por ” Floresta”. O Ademar era um bom avançado, embora não chegasse ao nível do Filomeno.
Mas desporto desporto era, para os meus pais, a natação.
Por isso, quando ainda éramos pequenos colocaram-nos no Clube Desportivo Nun’Alvares, cujas instalações ficavam no princípio da ilha de Luanda, depois de efectuada a passagem pela ponte. Não sei se o clube ainda existirá, mas na altura, nos anos sessenta, era uma verdadeira escola, com aprendizagem de natação, remo e vela.
Por lá andaram o Carlos Nascimento (mais tarde conhecido por ter representado Portugal num dos festivais da Eurovisão), o Joaquim Pablo, o Fortes, o Carlos Pacheco, os Nolascos, enfim, tantos…
1966 foi um ano marcante para o Ademar. Foi seleccionado, juntamente com o Joaquim Pablo e o Luís Filipe Nolasco, para representar Angola nos campeonatos nacionais de natação, a realizar na então metrópole. No entanto, chegados a Lisboa, os jovens angolanos foram impedidos de participar, pois a Associação Desportiva de Natação de Angola não tinha pago as quotas devidas à Federação.
Na altura, os jornais propagaram este escândalo. Como era possível os jovens nadadores terem sido seleccionado e embarcado e, depois, devido a uma questão burocrática, não participarem nas provas desportivas?
A adolescência também foi o temo das “farras”. Nesse aspecto, o Ademar tinha o seu grupo. Raras eram as sextas-feiras ou os sábados em que não havia uma festa, em Luanda.
Terminado o quinto ano do liceu, no velho Salvador Correia, era chegado o momento de escolher. O Ademar escolheu a alínea f), com o objectivo de seguir Engenharia Eletrotécnica, curso que existia na Universidade de Angola.
OS ESTUDOS
Depois do 6º e do 7º ano, ingressou na Faculdade. Sem ser um aluno brilhante, passou com facilidade as diversas cadeiras do curso.
Tinha um grande à vontade. Um dia, à noite, vimos um polícia branco bater, com o cassetete, num negro. O Ademar, com escassos 16 anos, deu ordens ao polícia para não bater, tendo este acatado a “decisão”. Poderia ter-se voltado contra o Ademar, mas, em vez disso, deu conta do que estava a fazer e cessou a agressão.
Concluída a licenciatura, veio para Lisboa, em 1973. Na altura, tínhamos um apartamento arrendado em Lisboa, no Campo Grande, próximo do apartamento dos pais do Rui Coelho.
Por isso, o Ademar veio viver connosco, sem saber bem o que o esperava.
Começou a estagiar na CPPE, actual da EDP, em Moscavide. Estava entusiasmado com o estágio, que lhe tinha permitido conhecer pessoas como o Engº Gaspar Correia, que referia como uma sumidade.
as o que esperava o Ademar no apartamento do Campo Grande?
O apartamento, situado na então Rua Projectada ao Campo Grande, lote 1, era um local pródigo em reuniões, um centro de agitação.
Bum determinado dia de Abril de 1973, a quietude matinal foi alterada pelo repetido toque da campainha. Eram 7 horas da manhã e uma brigada da PIDE, constituída por três pessoas, entre as quais a conhecida Albertina, irrompeu pelo nosso apartamento, no intuito de prender a nossa irmã Sita. Não a tendo encontrado, iniciaram um processo de busca, vasculhando as gavetas, livros e tudo o que estivesse à mão.
Terá sido, talvez, a primeira experiência política do Ademar, que o viria a marcar, revoltado como ficou com o desrespeito dos pides.
unca tendo sido um “activista político”, a partir daí passou a colaborar activamente no “processo revolucionário”.
O CASAMENTO
Em Dezembro de 1973, casou-se em Luanda com a Isabel Penaguião (Bicha). O namoro durava há longos anos, praticamente desde o início da adolescência.
A festa foi em nossa casa, na Floresta.
As mesas estavam colocadas nos vários canteiros, no jardim.
Foi um dia feliz, para o Ademar e para a Isabel.
As fotografias mostram-nos sorridentes…
Depois do casamento, foi a opção: viver em Luanda, Angola, ou ir para Lisboa, Portugal?
O casal decidiu-se por ficar em Luanda, onde viria a nascer, em 4 de Agosto de 1976, o Frederico…
A VIDA EM LUANDA
Mas a vida em Luanda iria sofrer uma alteração, com o 25 de Abril.
O Ademar acabaria por ingressar no serviço militar, efectuando a recruta em Nova Lisboa (actual Huambo).
Esteve envolvido num processo de desvio de armas para o MPLA, arriscando-se a uma pena de prisão.
Mas o processo acabaria por ser arquivado, naquele período conturbado.
O Ademar iria ainda participar nas estruturas do MPLA, no sector intelectual.
Após a independência, seria o responsável da indústria pesada no Ministério da Indústria.
Os que com ele contactavam guardaram sempre a imagem do sorriso franco e aberto, o riso fácil, a alegria de viver, que foi uma constante da sua vida.
O 27 DE MAIO
Bom profissional, exercia as suas tarefas meticulosamente, privilegiando o diálogo e as reuniões de trabalho, ao invés dos longos relatórios.
Quando se verificou o 27 de Maio, tinha a consciência totalmente tranquila de não ter participado em qualquer acção, por mais diminuta que fosse.
Porém, tinha um pecado capital: o seu apelido era “Valles” e a sua irmã Sita estava a ser impiedosamente procurada e vilipendiada.
Por isso, por uma questão de segurança, resolveu “entregar-se” à DISA, procurando o seu padrinho de casamento, Zé Vale, então um dos responsáveis da polícia política.
Entrou na prisão de S. Paulo num dos últimos dias de Maio de 1977.
Esteve sempre confiante de que sairia em breve.
Elaborou um relatório sobre o seu trabalho profissional, à frente da indústria pesada no Ministério da Indústria, que demonstrava em que consistia o seu dia a dia.
Na prisão, procurou manter o ânimo, dando explicações de inglês, francês e outras matérias aos que menos sabiam, num processo de transmissão de conhecimentos em que as cadeias são pródigas.
Passou o ano de 1977 e tudo indicava que o Ademar sairia, em breve.
Mas o dia 23 de Março de 1978 foi fatídico para ele.
Nessa noite, chegou uma brigada da DISA, com uma lista de nomes, para entrarem numa ambulância. Todos sabiam o que aquilo significava. A viagem para a morte, sem julgamento, sem o mínimo direito à defesa.
O Ademar seria assassinado nesse dia.
Os seus verdugos, esses, continuam impunes, enquanto Angola aguarda o dia em que a reconciliação seja possível, com a assumpção de responsabilidades…
infelizmente, ahistória está cheia de casos como o do Ademar. e dizem os que mandam na vida dos outros que se deve contruir a vitórias sobre os erros dos outros. se esta história é verdadeira, o que tido a ver o irmão de Sita com esta? esqueceram-se, se calhar, que não se deve odiar uma raça por causa de um homem? e são os dirigentes e conselheiros que angola ainda tem…
A decisão que tomei em 1977 em viver em S. Paulo – Brasil – teve boas e más consequências. Entre estas últimas registo, com muito pesar ( que só se agrava com o decorrer dos anos )que perdi totalmente qualquer contacto com os meus amigos de infância. Admirados (por todos que com eles tiveram o privilégio de conviver) pela sua jovialidade, simpatia e extraordinária qualidade humana, registo com muito e sincero orgulho que fui amigo de infância no Nuno Alvares dos Valles ( o Ademar, a Sita e o Edgar Francisco ) . A coragem , o sentimento de dever para com a sociedade na qual estavam inseridos, fizeram do Ademar e da Sita extraordinários exemplos de como se devem comportar todos os que tiveram a sorte de nascer em bons ambientes familiares.
Querido Edgar Francisco (aonde estiveres), muito obrigado pela enorme felicidade que me deste em recordar dos nossos irmãos Ademar e Sita.Lembrar-me-ei deles ( e de ti também )muito muita saudade,muito orgulho e enorme admiração.
Lembro-me de ir com os meus irmãos às explicações de inglês da D. Lúcia. Ficava no carro (era um miúdo com 3/4 anos) com o motorista. Não tenho a certeza quanto à Nazaré mas o João e a Luísa iam lá todas as semanas.
Fui colega do Ademar (na altura chamavamos-lhe Edgar) no 5º e 6º ano do Liceu, em 1964 – 66. Mais tarde voltei a encontrá-lo, no início de um longo período a trabalhar na TAAG, entre 1976 e 1988.
Não creio que o Ademar tenha estado envolvido no 27 de Maio, mas a Sita não só esteve como foi uma espécie de eminência parda (quando não mentira) do Nito. O golpe que deram, cuidadosamente preparado e executado com a violência possível desencadeou uma repressão terrível.
Seria de esperar outra coisa? Se o Nito e o seu grupo (Sita, Bakaloff, etc, etc) tivessem ganho o poder o que teria sucedido?
Vilipendiada, my ass!!
Agora sem gralhas e com retoques:
Fui colega do Ademar (na altura chamavamos-lhe Edgar) no 5º e 6º ano do Liceu, em 1964 – 66. Mais tarde voltei a encontrá-lo, no início de um longo período a trabalhar na TAAG, entre 1976 e 1988.
Não creio que o Ademar tenha estado envolvido no 27 de Maio, mas a Sita não só esteve como foi uma espécie de eminência parda (quando não mentora) do Nito. O golpe que deram, cuidadosamente preparado e executado com a violência possível (os cubanos meteram-se no meio…) desencadeou uma repressão terrível e sangrento.
Mas seria de esperar outra coisa? Se o Nito e o seu grupo (Sita, Bakaloff, etc, etc) tivessem ganho o poder o que teria sucedido? A julgar pelas baixas que causaram no golpe, devia ter sido lindo…
O Eduardo Nascimento não é Carlos Nascimento, meninos!
Vilipendiada, my ass!!
Isto é doloroso…!!! até quando a verdade?
Bom dia, meus senhores e obrigado pela informação que dispõe neste site da internet, informações relactivas ao passado de Angola que são de caracter, e capital importância a todos os angolanos, para o meu caso como estudante do curso de Direito, tenho a necessidade de atualizar-me, e portanto tudo quanto poderem fazer, façam para manterem-nos informados, é pouca mais já é um grande contributo.
Sou apaixonada por Sita, não sei se algum dia irei saber de uma historia mais digna do que a dela e do marido.
Quero saber como posso fazer parte da associação.
Interesso-me por tudo o que «toca» Sita Valles. O autor refere-se ao Carlos Nascimento….se é o do Oição, Oição…na Europa conheciamo-lo por Eduardo e não Carlos.
Se por acaso tiver fotos do colégio Nuno Alvares em Benguela, gostava muito de ver uma ou duas para dar uma enorme alegria a um amigo que tem muitas saudades e estudou lá.<Obrigada
Realmente é muito triste e é uma tragédia o que aconteceu com o Ademar, pelo que lie, trata se de uma pessoa enocente cujo foi assassinado por ter um Irmä que possivelmente tinha estado envolvido com o atendado!
Mas uma coisa näo compriendo, mas se o Nito Alves foi tido apoiado pelos russos, porque que entäo o Agustinho Neto foi pra Russia depois de estarar doente para ser tratado…?
Eu pessoalmente sou um Emigrante e vivo na Alemanha a mais de vinte Anos, o que me mais enteressa é a estoria do 27 de Maio de 1977. Eu tinha na altura 8 Anos e era praticamente uma crianca em Luanda e me recordo mais ou menos das confuccoes que passaram. Eu näo conheci o meu pai Paterno e so sei que foi Vitima das accoes de 27 de Maio, Segundo ouvi ele foi membro do MPLA e talvez Comissario do Bairro do Zambizanga ele chamava se Adelino Kintino e foi Assassinado pelas Tropas do Nito Alves na mesma leva com o ” Com.-Dangerée” duma forma muito triste, que eu näo queiro citar aqui.Qualquer das maneiras eu acho este Site muito interessante e gostaria saber mais sobre as Histórias dos aconticimentos desta data em formas de Livros,E-mails etc. Se alguém aqui tiver mas informacoes sobre o tema por favor me escreva me: meu endereco é, (***@***) ficaria muito agradecido. Obrigado
Como foi possivel assassinarem o Ademar sem possibilidade de defesa. Sera k nao havera julgamento para aqueles que o assasssinaram.
A DISA poder-nos-a fornecer factos que provam que o Ademar estava envolvido na “intentona”.
Ora,se ate agora nada foi divulgado entao estava inocente.
Julgar aqueles membros da Disa e os seus mandantes e tarefa obrigatoria do povo angolano
Os filhos dos carrascos devem saber quem sao os pais.Vamos denuncia-los pelas redes sociais existentes. Nao tenham medo. Vamos denuncia-los ao mundo.
Que provem que o Ademar estava envolvido. Teve julgamento? Foi fuzilado apenas pelo sobrenome?
Todos aqueles afectados pelo 27 de Maio devem denunciar ao mundo as atrocidades cometidas pelos carrascos da DISA. Muitos destes carrascos estao vivos… mas nao esquecemos
e muito triste ler isto.essa historia me deixa muito comovido.
enfelizmente a historia ca em angola não é bem contada, mas um dia que este regime chegar ao fim,ai sera feita a justiça.
Assim como a Historia de Ademar Valles houve muitos irmãos de Angola que perderão as suas vidas por causa de um bando de politicos incensiveis, e assassinos, que andão impunes e deveriam ser todos levados as barras dos tribunais,eu sinto a dor da mãe do meu pai que perdeu o seu filho porque,no 27 de maio o Dr. perdeu o controlo da situação, a minha avó até hoje nao enterrou o seu filho e ela chora e chora. Há de chegar o dia…….. meus irmão de Angola.
Isso e mais uma prova para aqueles que pensam que no 27 de maio eram sou pretos que estavam envolvidos quero dizer que a maioria dos que foram fusilados eram mulatos ,brancos nascidos em angola e o caso do ADEMAR VALLES E A SUA IRMA SITA VALLES QUE ERAM DE RACA INDIANA.
caros moderadores, a biografia do Ademar foi feita pelo seu irmão Edgar Valles? Preciso saber para citá-lo na minha pesquisa sobre os Desaparecidos no “27 de Maio”.