Angola tem de voltar a saber que nada é mais sagrado do que a vida humana

Angola tem de voltar a saber que nada é mais sagrado do que a vida humana

Daqui há algumas semanas completar-se-ão 28 anos desde que em Angola se testemunhou o culminar daquilo que viria a ser uma das páginas mais tristes e obscuras da sua conturbada história: o 27 de Maio de 1977. Para os angolanos mais jovens é, certamente, difícil, se calhar até impossível, entender o que se passou e, por conseguinte, perceber o terrível impacto nacional das últimas três décadas.

Mesmo para muitos dos mais idosos ( senão a maioria), essa data continua até hoje a revestir-se de um mistério e opacidade difíceis de explicar e, por isso mesmo, merecedores de um esclarecimento de uma vez por todas, com fins conciliadores mas também pedagógicos. Claro que não sou eu quem tem a pretensão de trazer tal esclarecimento.

Este texto é apenas a expressão do meu desejo em conhecer a verdade sobre o que se passou, como é com certeza o caso de outros angolanos. Tal esclarecimento haveria de beneficiar não só as famílias directamente afectadas pelo que aconteceu, mas como também a Nação inteira, sem excepções, sobretudo as gerações futuras.

O 27 de Maio de 1977 foi apenas uma das manifestações visíveis a olho nu, de uma série de lutas intestinas que dividiam e dilaceravam o MPLA já há bastante tempo, desde muito antes da independência. A Revolta Activa é o exemplo mais flagrante do período pré-independência. Tais lutas e divisões tinham várias origens: desde as pesadas heranças do colonialismo português (problemas de natureza social, racial e tribal), passando pelas diferentes correntes ideológicas, tendo a Guerra-fria entre os Estados Unidos e a União Soviética como pano de fundo, mas também as divergências entre os soviéticos e cubanos, no seu apoio a essas diferentes correntes política ideológicas que germinaram no seio do MPLA (personificadas nessa altura por Agostinho Neto e por Nito Alves), até a manifestações menos nobres como a simples ganância pelo dinheiro, o oportunismo e a apetência pelo poder a todo o custo.

O ambiente de intolerância que passou a reinar era tal, que toda aquela diversidade étnica, social e moderação ideológica que diferenciavam o MPLA de certos partidos que tinham sido alguns dos critérios da sua génese, foram em escassos dois anos após a independência, transformados em terríveis barreiras intransponíveis e em argumentos que levaram a uma cisão que muito rapidamente se revelou absolutamente letal e quase suicida.

Assim é que depois de uma série de acontecimentos internos a nível do partido, entre 1976 e 1977, que teve como apogeu a expulsão de Nito Alves e José Van-Dúnem das mais altas esferas do MPLA, instala-se no partido e no país uma situação de mal-estar já completamente indisfarçável, e eis que a 27 de Maio de 1977 regista-se a erupção do mal em toda a sua dimensão.

Seguiu-se um período de grande confusão, em que se registaram as mortes de importantes membros do MPLA e do aparelho de Estado, então atribuídas pelo MPLA a adeptos de Nito Alves que, depois de algumas semanas de intensa perseguição, é capturado e as suas imagens são mostradas com muita ênfase pela única televisão estatal da época.

A seguir nada. Um longo silêncio de morte e de medo se instala no pais e nunca mais se fala oficialmente do assunto. O silêncio era apenas quebrado anualmente pelas celebrações muito oficiais da data, com a exibição televisiva das mesmas imagens e da versão dos eventos segundo a cúpula do MPLA que passou a liderar o partido e o país.

Desde os primeiros dias que se seguiram ao 27 de Maio de 1977, muitas foram as famílias que em vão tentaram saber do paradeiro dos seus ente-queridos que “desapareceram” misteriosamente e nunca mais regressaram às suas casas.

Essas famílias permaneceram até hoje, 28 anos depois, na mais completa obscuridade quanto à possível localização dos seus parentes. Estarão mortos ou simplesmente “desaparecidos”, escondidos em algum lugar mas vivos? Entre trinta mil e sessenta mil mortos ou desaparecidos, como resultado de represálias que afinal continuaram inexoravelmente a ser executadas, bastantes meses, anos até, depois dessa data fatídica.

Quaisquer que tenham sido as motivações de uns e de outros, partidários de Agostinho Neto ou de Nito Alves, não podem existir explicações plausíveis para tantas mortes! O que aconteceu em Angola nessa altura foram perdas irreparáveis que não poderão permanecer eternamente “encafuadas” no fundo das gavetas dos detentores de tão horripilantes segredos.

A grande família angolana em geral, e os parentes de membros do MPLA em particular, cujos corações continuam esmagados por tamanho peso, dada a ausência dos seus pais, filhos, irmãos, sobrinhos, netos, etc, apelam ao MPLA na qualidade de partido único no poder aquando do 27 de Maio de 1977, que reflicta com seriedade no assunto, para bem de toda a nação.

O MPLA diz numa declaração de 2002, a propósito do 27 de Maio de 1977, que tinham sido julgadas, condenadas e fuziladas apenas 11 pessoas, consideradas directamente implicadas no fraccionismo. Se essa é de facto a verdade, onde foram, parar então as outras trinta mil a sessenta mil pessoas “desaparecidas” na mesma altura?

Citando um exemplo que conheço bem, qual o paradeiro do cidadão Joaquim Maria do Nascimento (também conhecido por “Kimaria”), natural de Luanda, filho de Manuel Maria do Nascimento e de Madalena B. Dias dos Santos, ambos naturais da Funda? Esse cidadão que por altura do 27 de Maio de 1977 tinha 33 anos de idade, era Comissário Político do Estado maior das FAPLA, é meu pai. Um desses dias a seguir ao 27 de Maio, foi ao serviço (ali nas imediações do antigo Diário de Luanda) e nunca mais voltou para casa. A criança de 12 anos que eu era, fartou-se de interrogar-se (e aos adultos à volta) durante anos a fio sobre as razões pelas quais esse pai nunca mais voltava. Se morreu, então porque é que não houve óbito? Onde está o corpo dele? Se não morreu onde é que ele para???

Estas e muitas outras questões são, com certeza, partilhadas por muitos milhares de angolanos que também perderam de repente os seus ente-queridos de vista, à imagem dos desaparecidos do Chile da época de Pinochet ou ainda dos campos cambojanos, vítimas da atroz ditadura de Pol Pot. Mas dada a frieza com que se continuaram a executar e fazer desaparecer pessoas, também temos óbvias semelhanças com o genocídio ocorrido no Rwanda, entre hutus e tutsis.

Mas pouco importa com que genocídio somos mais parecidos. O que importa mesmo é que 28 anos depois, impõe-se um dever sagrado de memória porque não se pode passar uma simples borracha sobre um dos episódios mais sangrentos e tenebrosos jamais perpetrados em Angola, desde a sua independência.

Solicito, por isso, que se instaure uma Comissão Soberana de Inquérito da Verdade, encarregue de coordenar acções visando restabelecer toda a verdade sobre os nomes e número de mortos e/ou desaparecidos como consequência do fenómeno 27 de Maio de 1977. O objectivo principal dessa Comissão seria essencialmente o de contribuir em grande medida para o esforço de reconciliação nacional que não se pode limitar a medidas cosméticas, sendo por isso necessário atacar os problemas mais profundos que apoquentam largas faixas da população à escala nacional mas que, por permanecerem em silêncio, não se apercebe à sua justa medida, dos danos físicos e morais causados àqueles que perderam membros das suas famílias nessas condições.

Eis algumas das acções que poderiam ser desencadeadas por essa comissão (lista não exaustiva):

  • Sublinhar claramente e sem ambiguidades que essa Comissão não terá como missão julgar quem quer que seja
  • Fazer o levantamento do número de mortos, bem como dos seus nomes
  • Encontrar os locais onde jazem as ossadas dos que foram comprovadamente mortos
  • Estabelecer o número e nomes de desaparecidos cujos restos mortais não forem encontrados
  • Organizar e financiar funerais para cada morto ou desaparecido, de maneira a que cada família possa finalmente chorar, enterrar se possível os seus mortos e dar por terminado o ritual do luto
  • Proceder a um pedido de desculpas inequívocas por parte do MPLA e do Estado Angolano, a cada família enlutada por ocasião do 27 de Maio de 1977
  • Decretar uma data nacional comemorativa, destinada a relembrar e honrar a memória de todos os que tenham morrido ou desaparecido por causa do 27 de Maio de 1977
  • Criar uma Força de Trabalho de Pesquisa Científica nas áreas das Ciências Políticas e da Sociologia, que estude e/ou recolha toda a informação histórica existente relativa às origens do fenómeno “27 de Maio de 1977”, bem como das suas consequências a curto, médio e longo prazo na arena internacional. Fornecer os resultados dos estudos ao Ministério da Educação Nacional para que essa informação figure nos manuais e livros escolares, a nível nacional, para fins pedagógicos.

Tendo em conta o principio de aprender com os nossos próprios erros, pensamos que só desta forma poderemos contribuir de maneira concreta, objectiva e duradoira para um verdadeiro apaziguar dos espíritos. O ponto-chave a não perder de vista é a tolerância entre angolanos, factor decisivo para a instauração de uma verdadeira democracia e paz durável em Angola.

Este país tem de voltar a aprender que nada é mais sagrado do que uma vida. Nenhuma doutrina religiosa ou política, venham de onde vierem, justificam mortes humanas. E só poderemos deixar uma herança decente às gerações futuras se aprendermos nós mesmos primeiro e evitando-lhes os percalços pelos quais passamos, transmitindo as nossas experiências de vida, oralmente e por escrito. Deixando nos anais da história de Angola, marcas indeléveis que lembrem a todos, todo o mal que nós próprios, filhos de uma mesma nação, somos capazes de fazer-nos uns aos outros.

Enquanto continuarmos a tentar “tapar o sol com a peneira” tomando decisões de cunho meramente cosmético, e recusando-nos a encarar e a aceitar os nossos próprios erros, haveremos de continuar a tropeçar nos mesmos buracos. De resto existem pelo mundo afora numerosos exemplos de países que em busca de uma verdadeira reconciliação interna, procuraram sanar com sinceridade gravíssimos conflitos nacionais desencadeando iniciativas como as que sugeri acima. Vejam-se os casos da África do Sul, do Chile, do Uruguai e do próprio Rwanda, só para citar esses exemplos.

Agora que Angola conhece o seu terceiro ano consecutivo de paz. um record, depois do curtíssimo período de paz que precedeu as eleições de Setembro de 1992, não seria justo pensar apenas no meu pai ou só nas vítimas do 27 de Maio em geral. O meu pensamento é também dedicado à totalidade dos angolanos de diferentes sensibilidades políticas que perderam as suas vidas em prol da luta pela independência nacional e aos que tombaram ao longo da terrível guerra civil que vivemos na nossa martirizada terra até muito recentemente.

Especial lembrança para aqueles que também no seio de outras agremiações políticas tenham sido vítimas mortais da mesma intolerância política que deu origem a fenómenos similares ao “27 de Maio de 1977” no MPLA.

Que as instâncias superiores do MPLA e do Governo de Angola dêem mostras de mudança, de pragmatismo, de modernismo e de real abertura diplomática, abrindo dossiers que encerram capítulos sombrios da nossa história comum, para a exorcização definitiva do espectro da guerra e da dor, que desde há várias décadas nos enluta, tal qual uma maldição.

Bem-haja.

* Foi locutor da Rádio Nacional de Angola e da televisão Popular de Angola. Em 1989 formou-se no Curso Superior de Tecnologia em Processamento de Dados, pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Reside em França onde exerce a sua actividade profissional.

27 de Maio - 31 anos


Sugestões

6 Respostas

  1. meireles diz:

    ( DOCUMENTO PERTENCENTE AO ESPOLIO DO DR HUGO JOSÉ AZANCOT DE MENEZES ,UM DOS FUNDADORES DO M.P.L.A.)

    MOVIMENTO POPULAR DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA
    (M.P.L.A.)
    51.Avenue Tombeur de Tabora ,51
    3.P. 720 – LEOPOLDVILLE

    COMUNICADO A TODA ORGANIZAÇÃO DO M.P.L.A.

    Nas condições particularmente difíceis em que decorre a revolução Angolana, o Congresso do M.P.L.A. Está impossibilitado de intervir normalmente na solução dos problemas da sua competência.

    Para as condições anormais do presente , impõe-se um processo excepcional, salvaguardando -se porém todo respeito à competência do congresso para logo que as condições da nossa luta voltarem ao mínimo de normalidade.

    O comité Director do M.P.L.A. Nas suas sessões de 13 , 21 e 22 de Maio de 1962, com a intenção única de fazer avançar a revolução com o máximo de eficácia e de segurança , decidiu – com plena responsabilidade de que dará conta ao próximo congresso – remodelar o comité Director do M.P.L.A..
    O novo Comité Director do M.P.L.A. é assim constituído:

    MARIO DE ANDRADE

    MATIAS MIGEIS

    HUGO DE MENEZES

    LUIS DE AZEVEDO JUNIOR

    GRAÇA DA SILVA TAVARES

    DEOLINDA D`ALMEIDA

    JOSÉ BERNARDO DOMINGOS

    GEORGES MANTEYA DE FREITAS

    VER. DOMINGOS FRANCISCO DASILVA

    DESIDERIO DA GRAÇA

    JOÃO VIERA LOPES

    JOÃO GONÇALVES BENEDITO

    JOSÉ MIGUEL
    Mário de Andrade continua com as funções de Presidente do M.P.LA.
    Matias Migueis passa a exercer as funções de vice – Presidente do M.P.L.A.
    O posto de Secretario – Geral é substituído por um Secretário cuja composição é a seguinte:

    Graça da Silva Tavares – 1º secretário

    João Viera Lopes – 2º secretário

    Desidério da Graça – 3º secretário

    O novo Comité Director do M.P.L.A. Entra imediatamente em função.

    Léopoldville ,25 de maio de 1962.

    O COMITÉ DIRECTOR

  2. maria eduarda freitas diz:

    Bem haja pelo artigo sobre os desaparecidos e sobre esta página em geral. Minha mãe, de nome Fernanda Carolina Rodrigues de Freitas, Portuguesa, nascida em Moura no Alentejo e em Angola desde 1950. Desapareceu em Março de 1977, capturada pela Unita e metida no antigo matadouro da Acmol na antiga Nova Lisboa. Desapareceu sem deixar rasto e até hoje não faço a mínima idéia do que lhe aconteceu e se ainda estará viva.É um pesadelo que não tem fim…..
    Um abraço cordial

  3. A.S.S. diz:

    o periodo que antecedeu ao 27 de maio foi de grande repressao com os elementos dos comites Amilcar Cabral tendo todos os seus menbros ido parar a Casa de Reclusao e quem era o Mentor egrande impolcionador do Fusilamento de todos os menbros do C.A.C. era O SENHOR NITO ALVES QUE ATRAVES DO SEU PRINCIPAL ORGAO DE PROPAGANDA O PROGRAMA RADIOFONICO KUDIBANGUELA apelava ao fusilamento dos seus menbros e tambem com muitas mensagens de teor racista das quais passo a citar “Angola so sera um pais livre quando eu vir MULATOS E BRANCOS A VARREM AS RUAS” dando a entender que as duas raças eram as culpadas da incapacidade dos dirigentes do M.P.L.A.de satisfazer as nessecidades do POVO ANGOLANO e admiro-me como e que ele conseguia ter mestiços e brancos nas suas fileiras mestiços esses que foram quase dizimados em algumas regioes de Angola quando a furia de Agostinho Neto se abateu sobre os revoltosos e nao sou era so ter um certo grau de intelectualidade e academico que ia-se parar a um pelotao de fusilamento e claro que alguns tambem foram presos e mortos para alguns dirigentes e senhores da famigerada D.I.S.A. poderem comer as mulheres destes cidadaos ja agora o caso mais flagrante e do medico TILU MENDONÇA quem estara por tras da sua morte? quem beneficiou com tudo isso? tchau um Abraço A.S:S.

  4. justino chipep diz:

    Cresci no lado (M) tenho 30 anos e a verdade e que Angola tem de reclamra realmente essa situacao porque a verdade tem de vir a tona, coragem um dia eles vao pagar.

  5. justino chipepe diz:

    coragem manos quem mata com ferro com ferro morre

  6. Adriano Baptista diz:

    Oi..pessoal…. Eu sou o Adriano , de nacionalidade angolana , tenho 21-anos de idade e sou técnico médio de educacão na especialidade de geo\história… eu vim por este meio dar o meu contributo dizendo q o 27 de MAIO de 1977 em Angola foi o dia mais Triste da História de Angola prq presenciou-se ANGOLANOS á mataren-se uns aos outros…Segundos dados oficiais pprq foram pessoais q estiveram lá disseram q desapareceram mais de 80.000 pessoais…. e só pra dizer q até ESTUDANTES q naqueles tempos eram chamados assemilados tambem desapareceram e PORFESSORES não escaparam…foi então q o país tinham entrando num grande declinío…
    Verdadeiramente o povo Angolano precissa de saber a verdade..doi o que doer mais o povo precissa de saber a verdade e os responsaveis devem ser levados a justiça prq verdadeiramente ouve um grande abuso de poder…. só pta terminar uma minha colega tinha me dito:OLHA A DISA MATOU O MEU MARIDO E A UNITA MATOU O MEU FILHO….
    Por isso eu fico muito grato por este vosso grande contributo….q vcs continuem a divulgar a verdade……
    o meu msn e e-mail é:[email protected]

    God bless you…..

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