Há 50 anos nascia o Kudibangela
O programa radiofónico Kudibangela teve uma vida efémera mas bastante intensa e atribulada nos cerca de dois anos que fez parte da grelha da Rádio Nacional de Angola (RNA), tendo a sua primeira emissão ido para o ar no dia 4 de Dezembro de 1974 ainda a RNA se chamava Emissora Oficial de Angola (EOA).
1ª Parte
A última emissão do programa aconteceu no mês de Setembro de 1976 num dia que, entretanto, desapareceu da memória das pessoas que estiveram directamente ligadas ao projecto e que sobreviveram à brutal repressão que se abateu sobre o país na sequência dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977.
De um total de 9 elementos da equipa, todos presos pela DISA, apenas quatro sobreviveram à chacina dos seus algozes.
Agora andam por aí nas calmas a enfrentar outros problemas que já têm a mais a ver com o implacável peso da idade, sendo mais preocupante a situação de um deles acometido há cerca de dois anos por um acidente cardíaco.
São eles Emanuel de Jesus Conceição da Costa, Evaristo da Rocha, José António (Colosso) e Ricardina Rocha.
É com um desses sobreviventes, a quem solicitamos um depoimento escrito, o Emanuel de Jesus Conceição Costa, um antigo funcionário do Ministério da Informação mais conhecido por “Manino”, hoje com 72 anos idade, que vamos fazer este regresso ao passado, 50 anos depois do Kudibangela ter entrado para a história de Angola e lá ter ficado por mérito próprio da equipa que o concebeu, realizou e apresentou, a ter em conta o seu extraordinário impacto popular e político, no contexto da época.
A tal ponto o referido programa marcou aqueles tempos, que só assim se explica que ele tenha entrado para a nossa memória colectiva e o seu nome seja até hoje usado para os mais diferentes propósitos, mas sempre no âmbito de alguma contestação/confrontação política.
O nome/slogan completo do programa era “Kudibangela (weyá, weyá)- Construção. A luta em busca de uma nova Nação!”
O programa era diário, transmitido de segunda à sábado, entre as 7 e às 8.00 horas da manhã, tendo inicialmente uma duração de trinta minutos que depois passou para uma hora.
Na época os programas eram todos pré-gravados.
O Kudibangela era basicamente preenchido por textos de opinião dos membros da equipa sobre os mais variados assuntos no âmbito do nosso PREC, entenda-se, Processo Revolucionário em Curso.
Se hoje fosse possível voltar a ouvir o programa, talvez as novas gerações percebessem melhor as razões da crise que nos conduziu ao 27 de Maio de 1977.
Pelo conteúdo dos textos que preencheram as centenas de edições do Kudibangela, seria de facto possível revisitar uma época que hoje já é histórica e que cobre os meses que precederam a proclamação da independência, ou seja, os derradeiros dias da presença portuguesa em Angola já com a vigência do fracassado Governo de Transição saído dos Acordos do Alvor. Revisitando os textos do Kudibangela iriamos ficar também a saber como é que foram os primeiros meses do novo país que nasceu a 11 de Novembro de 75 na voz de Agostinho Neto como República Popular de Angola.
Lamentavelmente, os arquivos da RNA não permitem que uma tal revisitação seja possível pois estamos em crer que do seu acervo apenas façam parte alguns discursos oficiais e pouco mais, do muito que a Emissora transmitiu durante estes últimos 50 anos.
Tudo o resto, o vento deve ter levado nas bobines que foram para o lixo.
Hoje, olhando para tudo quanto se passou ao longo deste primeiro meio século da nossa vida colectiva após o 25 de Abril de 1974, não temos muitas dúvidas em considerar que o Kudibangela foi a primeira vítima da liberdade de expressão na Angola do pós-independência.
O nosso interlocutor começa o seu depoimento fazendo uma homenagem aos seus antigos companheiros assassinados pela DISA.
“Por ocasião do 50⁰ aniversário da 1ª emissão deste projecto, deste legado que foi o Kudibangela, inclino-me perante a memória dos meus camaradas Mbala, Betinho, Costa, Ngalangandja e Rui Malaquias, com quem partilhei quiçá, os momentos mais marcantes da minha vida.“
Manino Costa tem bem presente na sua memória que “no dia 4 de Dezembro de 1974, pelas 07H30, foi para o ar a primeira emissão do Kudibangela, integrando a grelha de Programas da então Emissora Oficial de Angola, cujo controlo, entretanto, era já exercido remotamente pelo MPLA, face à apatia e desmotivação evidenciados pelos representantes da administração colonial portuguesa, ansiosos de ver chegado o tempo de arrumar as malas e zarpar, parafraseando Zeca Afonso.”
Na sequência dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977, Manino Costa foi preso pela DISA no dia 31 de Maio desse mesmo ano.
Permaneceu detido por dois anos e quatro meses, num total de 850 dias, tendo repartido esse tempo de reclusão pela Prisão de São Paulo (20 meses) e o restante no campo de concentração do Tari, na Quibala.
Em Setembro de 1979 recebeu um “Mandado de Soltura” do Tribunal Popular Revolucionário assinado pelos “Camaradas Adolfo João Pedro, Manuel Bento, Orlando Ferreira Rodrigues, Simeão Manuel/Kafuxi e Carmelino Pereira, membros da Comissão de Revisão.”
O Mandado dos supra-citados juízes referia que Manino Costa devia ser posto em liberdade “por inexistência de matérias para julgamento”.
Sobre esse período da sua vida, no seu depoimento Manino Costa refere o seguinte:
“Já não questiono as razões da minha prisão. Questiono-me sim, por que razão ficaram com a minha casa, os meus bens, ficando a minha família ao relento?
Questiono-me sim, por que razão não fui reintegrado ao serviço?
Questiono-me sim, por que razão eu sou um “ilustre desconhecido” para os arquivos do Ministério da Informação e/ou organismos que o substituíram, constatação feita aquando da recolha das declarações de contagem de tempo que procedi, para efeitos de reforma.
Questiono-me sim, por que razão é que desde logo após a minha libertação me foram fechadas as portas e impostos entraves e dificuldades no meu propósito de refazer de forma condigna a minha vida e da minha família.
Hoje, volvidos 45 anos desde o 29 Setembro de 1979, já não tenho esperança de que alguém me queira responder…”
Por razões de espaço, só na próxima edição daremos aqui à estampa a totalidade do depoimento de Manino Costa sobre a experiência que viveu há 50 anos como um dos membros da equipa do Kudibangela.
A equipa do Kudibangela
- Adelino António dos Santos (Betinho)
- Manuel Bernardo Neto (MBala)
- António Costa
- Emanuel Costa (Manino)
- Rui Valentim Joaquim Malaquias
- Evaristo da Siva e Rocha
- Benjamim Ngalangandja
- José Francisco L. António (Colosso)
- Ricardina da Purificação S. e Rocha (Didina)
2ª Parte
O Kudibangela foi concebido pelo Betinho
Na sequência da matéria aqui publicada na edição passada com que assinalámos o 50º aniversário da primeira emissão do “Kudibangela”, damos hoje tratamento integral ao depoimento de Manino Costa, um dos quatro sobreviventes da equipa que realizou e apresentou o referido programa radiofónico durante os cerca de dois anos que o mesmo foi transmitido pela EOA/RNA.
Para Manino Costa “o Kudibangela surge, numa primeira fase, para difundir a essência do trabalho que vinha sendo levado a cabo pelas Comissões Populares de Bairro (CPBs) e as Brigadas Populares de Vigilância (BPVs), no âmbito de uma estratégia que visava enaltecer e potenciar a imagem do MPLA no confronto político e ideológico com os outros dois movimentos que eram a FNLA e a UNITA. Essa era a realidade da época.”
Manino Costa tem bem presente na sua memória que “no dia 4 de Dezembro de 1974, pelas 07H30, foi para o ar a primeira emissão do Kudibangela, integrando a grelha de Programas da então Emissora Oficial de Angola (EOA), cujo controlo, entretanto, era já exercido remontamente pelo MPLA, face à apatia e desmotivação evidenciados pelos representantes da administração colonial portuguesa, ansiosos de ver chegado o tempo de arrumar as malas e zarpar, parafraseando Zeca Afonso.
O programa foi uma ideia concebida pelo Adelino dos Santos (Betinho) que a transmitiu ao Manuel Neto (MBala).
Por razões sobejamente conhecidas, existiam fortes laços de amizade e cumplicidade entre eles e o Juca Valentim e o Nado, dentre outros, que na altura respondiam pelo DIP do CC do MPLA em Luanda.
Foi daí, com este beneplácito, que surgiu então a possibilidade de franquearmos as portas da programação da EOA, hoje RNA”.
O nosso interlocutor recorda-se que “o Programa havia sido baptizado (pelo Betinho) inicialmente com o nome de “Construção”, durante o escasso tempo que antecedeu a sua primeira emissão, mas tão-logo se constatou que esse título não tinha a abrangência que queríamos, ou seja, não era suficientemente impactante para a dimensão do propósito que se pretendia alcançar.
Alguém – de quem já não me recordo e não sei se algum dos meus correligionários ainda em vida se lembra – sugeriu o nome “Kudibangela”, com uma explicação sucinta (mas convincente) do termo e aí tivemos a certeza de que aquele nome enquadrava-se na perfeição para o que pretendíamos.
Éramos uma equipa composta por MBala Neto, Adelino António dos Santos (Betinho), António Costa, Rui Malaquias, Benjamim Ngalangandja, Manino Costa, Evaristo Rocha, José António (Colosso) e a voz feminina da Ricardina Rocha.
O Ngalangandja ocupava-se exclusivamente da difusão do programa na língua nacional Umbundu.
Na sonoplastia, a Direcção da Rádio pôs à nossa disposição três técnicos, que connosco trabalharam nas distintas fases, a saber, Domingos Neves, Artur Arriscado e Óscar Pio Gourgel, qual deles evidenciando mais competência, maior criatividade, mais profissionalismo. Simplesmente fantásticos.”
Manino Costa diz-nos que “relativamente ao enquadramento de cada um de nós, (e também dos sonoplastas) havia um denominador comum no grupo que era o facto de todos nós estarmos filiados ao MPLA.
Todavia, importa aqui destacar, o programa não deveria ser declaradamente partidário, não obstante aparecer como porta-voz (se assim posso considerar) das Comissões Populares de Bairro, particularmente do Sambizanga.
Aí, a tendência, a inclinação partidária do Kudibangela tornou-se inevitável, mesmo porque o momento e as circunstâncias em que ele aparece foram determinantes para a nossa indiscrição nesse quesito.
E convém observar que depois, há sempre aquele período de “estudo mútuo”.
No caso do programa, a relação transmissor/receptor foi muito determinante para o caminho exitoso que percorremos.
Fruto de uma selecção criteriosa dos temas em abordagem e de uma explanação directa e de fácil compreensão, o Kudibangela ganhou a simpatia e a preferência de gentes dos vários estratos sociais, com substancial predominância para as classes operária e camponesa.
Portanto, era um programa concebido à medida dos seus superiores interesses, uma poderosa arma ao serviço do proletariado, no qual – a julgar pelo volume da correspondência que passámos diariamente a receber – pudemos ter a certeza de que as massas trabalhadoras do País, nele se reviam.
E pudemos naquela altura, também constatar (sem vanglória) que, em determinadas ocasiões, a audiência do Kudibangela superava a do “Angola Combatente”, deixando muitos pontos atrás o também concorrente “Povo em Armas” das FAPLA.”
As makas com a direção do MPLA
A parte mais substancial do depoimento do Manino Costa é dedicada ao relacionamento da equipa do Kudibangela com a direcção do MPLA trazendo-nos de volta todo o atribulado processo que conduziu à ruptura e ao consequente encerramento do programa.
“O Presidente Neto regressado a Luanda no dia em que o Programa assinalava dois meses de emissão constituiu-nos, a partir de uma recepção, precedida de jantar, de forma oficiosa, nos seus “olheiros”, tendo-nos em várias ocasiões convidado para almoços ou jantares, ao longo dos quais se passavam em revista não só, a situação político-militar vigente, como também a credibilidade e o peso do MPLA no seio das populações, bem como a sua própria imagem (de Neto).
Vinte meses foi o espaço de tempo bruto que durou o programa, com duas intermitências pelo meio (de Agosto a Novembro/75 e de Abril a Agosto/76).
Em Agosto/75 recebíamos a primeira ordem de suspensão.
Neto convidou a equipa e num jantar no Palácio, servido pela então futura Primeira-Dama, esforçou-se por nos fazer valer o argumento de que o momento não era propriamente para acirrar ódios nem se enveredar (declaradamente) para a violência, pelo que o Kudibangela deveria deixar de ser emitido.
Aceitamos, de bom grado a determinação dessa suspensão – que iríamos qualificar de pacífica – e que durou cerca de três meses, ao longo dos quais fomo-nos forjando e amadurecendo cada vez mais, na medida em que nos era possível dedicar mais tempo às actividades na Comissão Popular do Bairro.
Aquando da proclamação da Independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, o programa estava ainda suspenso, tendo retomado as emissões já nos derradeiros dias desse mês, culminando com o início da sua segunda etapa.
Estava em exercício já o 1º Governo constituído da República Popular de Angola, através do qual os angolanos se reviam e pensavam País, pensavam Nação, pensavam Cidadão, pensavam, sobretudo, Angola.
E é assim que ao retomarmos as emissões do programa, paulatinamente, fomos ganhando consciência de que o Kudibangela longe de ser um simples programa radiofónico a transmitir esperança e dar voz às massas populares que nele se reviam era sim e acima de tudo, um projecto que, de forma alguma, estava dissociado da desafiante conjuntura sócio-política da então mais jovem Nação do mundo.
Começavam, entretanto, a divisar-se já no horizonte os contornos dos propósitos que os novos antagonistas defendiam para a jovem Nação Angolana.
Começavam a ganhar forma os mecanismos e argumentos esgrimidos pelos opositores ao sistema e regime que o MPLA defendia, para a transição harmoniosa do programa menor para o programa maior, definidos nos seus Estatutos.
Esses factores levaram-nos à introdução de alterações substanciais à linha editorial do programa o que, sem dúvida, viria a contribuir para alargar o leque de cidadãos a quem, cada vez mais, se tornou difícil agradar e contribuíram e determinaram a sua segunda suspensão.
Definitivamente e de forma assumida, demo-nos conta de que, ao guinarmos mais para à esquerda na linha editorial do programa havíamos pisado em “areias movediças” e que muita gente se sentiu desalojada da sua zona de conforto.
A equipa não estava preocupada com isso e lançou, como slogan: “QUEM TEM MEDO DE KUDIBANGELA? A REVOLUÇÃO NÃO POUPA, NEM TOLERA REAÇAS!…” (corruptela do diminutivo de reaccionários).
Em resultado disso, uma nova ordem de suspensão foi determinada, desta feita de um modo menos pacífico, mesmo porque pensávamos nós que gozávamos de uma certa protecção da parte de Neto, também porque, em consciência, o “passo à rectaguarda” que estaríamos a dar, era tudo, menos voluntário.
Mesmo assim, apesar de termos as nossas vozes silenciadas, começaram as pressões acompanhadas até, de ameaças de morte.
Chegámos, inclusive, a ser vítimas de actos de delinquência, um dos quais culminou com o roubo de minha viatura, que pernoitava no quintal do MBala.
Ainda como agravante, a correspondência que nos era agora dirigida passou a ter um conteúdo contrário, já não de apoio, não mais de incentivo e encorajamento, mas sim de ameaças e acusações.
Ficamos expostos e corríamos um sério risco de sucumbir sob “fogo amigo”…
Francamente, nenhum de nós estava preparado para enfrentar intimidações de tal envergadura.
Como resultado de conversações durante as quais prometemos e garantimos cedências, o quadro editorial do programa surge, na sua derradeira versão, de forma cada vez mais incisiva onde, em absoluto, foram postas de parte e votadas ao esquecimento, as concessões que havíamos prometido.
A equipa sabia bem ao que se expunha, mas uma decisão estava já tomada que tinha a ver com o nosso compromisso irreversível na defesa dos ideais e da causa do proletariado.
E – qual Grito de Ipiranga – num determinado dia de Setembro de 1976 é lançado o repto: “SE O KUDIBANGELA ACABAR É PORQUE O FASCISMO ENTROU EM ANGOLA”.
Foi esta a frase derradeira do também derradeiro programa que foi transmitido.
Naquele mesmo dia a direcção da Rádio recebia uma notificação para vetar o acesso a qualquer elemento do Kudibangela às suas instalações.
Mas prevaleceu no ar, por algum tempo, uma pergunta que não se quis calar, proveniente da voz do povo: SERÁ QUE O FASCISMO ENTROU EM ANGOLA?”
Reginaldo Silva – Jornalista