Hoje, 10 de Dezembro, o mundo celebra os Direitos Humanos
A minha casa tem um pequeno jardim, lugar onde me reparto a cuidar das flores ou a tomar a vitamina D que o sol oferece, quer quando espreita pelas nesgas das nuvens, ou quando perde a vergonha e se dá a conhecer à descarada. Por vezes mostra-se agressivo. Então escondo-me dele numa sombra que consigo, atando os cantos de um retângulo de lona a quatro postes de madeira. É aí, nesse abrigo improvisado que, conforme a época do ano, tomo o café da manhã, passo os olhos pelas gordas, e apenas estas, pois, notícia agora; é relatar um escândalo político ou económico, difundindo, quer num quer noutro, prenúncios de corrupção, gatunagem ou compadrio, casos que nem sempre são resolvidos, das revoltas da natureza, anunciam-se tornados, terramotos, inundações e fogos incontroláveis, dão-nos conta de um parricídio com arma branca, um assalto à ourivesaria do bairro e outras não notícias, novelas e futebol, de resto, como já não há pandemia, e porque convém manter a malta sempre espavorida, as televisões vulgarizam a guerra em directo facciosamente comentada e a cores, para acentuar o horror e nos deixar enojados com a barbárie convenientemente praticada por um dos lados, como se na guerra houvesse um só contendor.
O meu recatado jardim, do qual teria continuado a falar, não fora a intromissão da guerra, dos escândalos, outras vilanias e seus cronistas, tem flores coloridas, um limoeiro, que nunca deu limões, e um recanto com relva, cujo verde que a erva tem, está a pintar-se de amarelo adoentado. Um amigo, entendido nessas maleitas, diz tratar-se de uma praga que se instalou e que rapidamente se alastrará em definitivo. Decidi abreviar-lhe o fim executando eu a empreitada. Comprei uma enxada e meti as mãos na massa a capinar, como dizíamos dantes. À primeira cavadela, estranhei a precisão e a agilidade no manobrar da ferramenta, apelei à memória, retrocedi quarenta e cinco anos, e fui reviver um acontecimento sórdido em que me envolveram à força e que me obrigou a ser o protagonista de inúmeras peripécias, numa das quais dei comigo de enxada em punho.
Vamos à história e depois à estória
A onze de Novembro de 1975, no dia em que Angola proclamou a independência, o seu nome revelou uma intenção popular; “República Popular de Angola”, os versos que o seu hino cantou, davam-lhe força; “Angola Avante, “Revolução, pelo Poder Popular” e os símbolos que se destacavam sobre o vermelho e negro da sua bandeira predizíam a aliança dos operários e dos camponeses; a Catana e a Roda Dentada, qual foice e martelo a não deixar dúvidas quanto ao caracter revolucionário da via a seguir. Acreditámos no desígnio, bradámos “vivas” entusiasmantes, brandimos palmas com veemência e o povo vislumbrou o alívio da canga colonial. Ao fim de treze anos de luta e muitos outros mais de humilhação colonial, estava finalmente concluído o “Programa Mínimo do Mpla” e, como; “a revolução não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional”, dizia Amílcar Cabral, logo nos oferecemos para pôr em marcha o “Programa Maior do Mpla”, que pugnava por um regime republicano, democrático e laico, com a garantia das liberdades de expressão, consciência, culto, imprensa, reunião e associação, para todo o povo angolano. Um ano depois, o terceiro plenário do Comité Central do Mpla, anunciava, pela voz do seu presidente, a RPA um estado decididamente a caminhar para o socialismo, e para dinamizar tão ambicioso projecto, assentou-se na realização de um congresso, no dia 10 de Dezembro do ano de 1977, onde surgiria o partido da classe operária, o Mpla Partido do Trabalho.
Ainda a ressaca dos festejos da independência nos toldava as ideias, já se perfilavam os oportunistas, a inventariar as tibiezas da revolução, que também as tem, a preparar o assalto aos vazios deixados pela administração colonial, e a organizar o saque das riquezas do país. Também era notória a resistência encoberta à opção política e principalmente ideológica eleita no congresso atrás citado. Iniciava-se a etapa que levaria à transmutação do movimento de massas, que deu alento à luta de libertação, no partido de classe, que nos conduziria ao socialismo prometido. Não sei a quem coube a decisão de fazer tal transformismo ao movimento, quando era sabido que muitos, talvez a maior parte dos que o abraçaram, durante a luta pela independência, não cabiam, como é óbvio, na nova formação política. O movimento não devia desaparecer, mas permanecer como frente ampla, conduzida, esta sim, pelo espectável partido, que chamaram do trabalho.
Assim começou a desavença, ninguém estava disposto a ficar de fora, mesmo os que discordavam da opção, para os outros, os que se reviam no socialismo, era surpreendente, até uma ofensa, presenciar forças manifestamente anti-socialismo na condução da revolução. Algo se passava que provocava um verdadeiro mal-estar, nos bairros pobres de Luanda, no interior da máquina do MPLA e também nas forças armadas. O rumo a dar à revolução foi sem dúvida o pomo da discórdia, que somada aos atropelos que excederam o razoável levaram o caldo a entornar na madrugada do dia 27 de Maio de 1977, com tiros por toda a cidade, a rádio nacional ocupada e a transmitir um programa que não constava do alinhamento previsto, na cadeia de São Paulo, onde se encontravam, faz algum tempo, militantes do MPLA acusados de fraccionismo, o seu portão foi derrubado pelos BRDM, pertencentes ao Destacamento Feminino das FAPLA e uma vez franqueado o povo do bairro invadiu-o e apropriou-se dos colchões que armazenados no pátio central da cadeia, aguardando os novos utentes, os militantes que se identificam com a opção socialista, apelidados de fraccionistas, até alguém com quem pretendiam os vencedores ajustar contas antigas.
Perante tamanha balbúrdia, uma parte do MPLA, pediu ajuda ao destacamento militar Cubano, estacionado em Luanda desde a independência, que logo entrou em acção e rapidamente pôs cobro ao “atrevimento” das massas, assim como barraram, literalmente à lei da bala, a marcha exaltada do povo desarmado proveniente dos bairros rumo ao palácio presidencial. Era a paciência a esgotar-se. A marcha foi reprimida com tamanha brutalidade, digna de uma versão latino-americana dos seus golpes de estado fascistas, os seus actores não se contiveram, temeram perdas nas regalias, tomaram o freio nos dentes e justificaram mais tarde o “excesso”, como uma conduta exaltada para impedir a tentativa de um golpe de estado. Nós, os que sobrevivemos, pois nem todo o golpe de estado é perfeito, éramos a outra metade do MPLA, se assim posso contabilizar, mas foi do seu todo a génese do desacato.
Temos relatado a nossa versão, propalamos o nosso testemunho, afirmando não termos sido, tidos nem achados na dita golpada, e por isso sobrevivemos, percebo hoje, no entanto, fomos sujeitos ao sequestro, um procedimento à revelia da justiça, a quase três anos de prisão, não esquecendo, para soberba dos algozes, as sessões de tortura física e psicológica que suportamos. Este episódio, da nossa prisão, estou cada vez mais convencido, mais não foi do que um estratagema para arranjar culpados, os bodes expiatórios, ao qual se seguiu uma operação de falsa bandeira, a morte dos comandantes, a manobra para “legitimar” o presidente da república a escancarar a porta à folia, decretando assim a caça indiscriminada aos fraccionistas, fossem eles quem fossem. “Não vamos perder tempo com julgamentos”, foi a palavra de ordem, e, como quem dá golpes de estado é que instaura o estado excecional, o conhecido estado de sítio, em que é permitido tudo; pôr a tropa na rua a disparar indiscriminadamente, instigar o medo na sociedade, expulsar do país quem dele não é oriundo, a pretexto de estarem ao serviço de interesses estrangeiros, prender sem mandado, torturar por prazer e matar sem pejo. Quem assim procedeu, foi claramente o verdadeiro autor do golpe, golpe que não foi, como dizem, apenas tentado, mas que realmente aconteceu.
O 27 de Maio de 1977, é assunto que já deu pano para mangas e por isso vou-me conter, mas, sendo hoje 10 de Dezembro, dia em que se relembram os direitos dos humanos, vou recordar, para que não caia no esquecimento, as crueldades praticadas ao arrepio dos ditos direitos; as detenções extrajudiciais, a bestialidade das torturas físicas e morais infligidas por diligentes agentes da polícia do estado, que ainda por aí estão e se arrogam com garbo dos crimes que praticaram, do desaparecimento forçado de inúmeros cidadãos, mais um rol de outros atentados aos direitos humanos que, quarenta anos passados, porque não nos calámos, o Estado Angolano incomodou-se, não percebeu que os tempos eram outros e vai daí, tentou mais uma jogada com a criação da CIVICOP, um braço do ministério da justiça e direitos humanos, assim o chamaram, encarregue de ludibriar famílias, sobreviventes, cidadãos e até a comunidade internacional, com abraços e gestos de perdão que haviam de culminar com a reconciliação nacional, porém, sempre recusaram a constituição de uma comissão de verdade e de justiça.
Aconteceu, o actual presidente da república e do MPLA ter pedido publicamente perdão, apenas em nome do estado, sublinhe-se, e num discurso perfeitamente rocambolesco, ter de novo acusado os ditos fraccionistas de golpistas, mas, porque os excessos então praticados pelos seus diligentes algozes foram de tal dimensão, que lhes roeu a consciência e os aconselhou ao pedido de perdão, à entrega dos restos mortais de alguns desaparecidos, tomando-nos por parvos ao utilizar a vulgar habilidade do “gato por lebre”, que não passa de mais um atentado aos direitos humanos.
Esta estória, que hoje aqui vos conto, começou no pequeno jardim da minha casa e aconteceu por causa de uma enxada que tive de manobrar, passados 40 anos, sobretudo na surpresa que foi o manifesto à-vontade no seu manejo. O Tari, um dos campos de trabalho forçado para onde fomos expiar os “crimes” que nos assacaram, era um lugar inóspito, onde se comia pouco e mal, e dormia mal e pouco. O Tari, não tinha portões, tão pouco existiam muros, porém não consta que alguém tenha fugido, e, por os não ter, não ostentava à entrada, tal como os seus congéneres nazis, a inscrição “O trabalho liberta”. Assim sendo, quando o sol começava a despertar, já estávamos de enxada na mão, prontos para cavar a terra, plantar batata, milho, ginguba, etc, bens conseguidos à custa do nosso trabalho escravo, levados em seguida para destino desconhecido, tal qual as identidades dos destinatários. Um dia, entenderam os doutos reabilitadores, que estávamos recuperados e prontos para sermos devolvidos à sociedade, passaram-nos para a mão um papel, a ” guia de soltura”, e mandaram-nos para casa sem nunca terem referido a culpa que determinou todos aqueles anos de clausura e do que afinal nos libertou aquele trabalho forçado. Então, em conclusão, detiveram, prenderam, torturaram, castigaram e mataram uma quantidade de pessoas e aos mentores, executores e carrascos nada aconteceu, não querem enfrentar uma comissão de verdade, ganharam a impunidade.
10 de Dezembro de 2024
José Reis
José Reis
Magnífico texto ! Mas me parece que o MPLA continua sem ouvidos para o seu povo!
Será que estou errado?