Perderam a Vergonha e Bateram no Fundo

Perderam a Vergonha e Bateram no Fundo

“Todos os factos têm três versões:

a tua, a minha e a verdadeira”

Provérbio chinês

Com a contestação, sobretudo em Luanda, a descobrir novas modos de protesto, para se resguardar da desalmada intervenção policial, que sempre acontece quando o povo reclama, assim prossegue, impávida, mas não serena, a governação de João Lourenço, o presidente que prometeu acabar com os “marimbondos”, os larápios que há muito vinham assaltando o erário público angolano, assim o ouvimos nos vários discursos que proferiu desde que tomou posse.

Do pacote das promessas constava uma outra proeza, tão ou mais arrojada, um gesto de humanidade para com as famílias dos desaparecidos no “27 de Maio de 1977”, que finalmente iriam receber os restos mortais dos seus desaparecidos e as respectivas certidões de óbito. As promessas esfumaram-se, as expectativas cedo se goraram e estamos a assistir a uma canhestra manobra para adulterar a história, privilegiando a sua verdade, a do presidente de Angola e do MPLA, que além de general, também se titula homem de história. A propensão para enganar o parceiro é antiga, é uma nódoa presente no ADN da família do MPLA.

Em 2019, a malvada tendência, começou a desenhar um novo estratagema, inventando a CIVICOP, “Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos”. Esta singular missão para resolver o desencontro, pretendia conciliar quem se incompatibilizou no intervalo de duas datas bem determinadas, 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002, e quis fazê-lo “em memória das vítimas dos conflitos políticos”, seja lá o que isto quer dizer.

É claro que a reconciliação com a UNITA está fora de questão, pois nunca o agrupamento de Savimbi viveu em harmonia com o MPLA e a reconciliação só acontece entre quem já esteve conciliado. O actual leader da UNITA declarou que optou por não certificar os restos mortais dos irmãos que lhe foram devolvidos, para não deitar por terra a implementação do plano de reconciliação, assim o disse, isto é, podem até ter sido enganados, mas isso é de somenos importância.

Mas, se a reconciliação desejada disser respeito aos intervenientes no “27 de Maio de 1977”, como são todos pertença do mesmo agrupamento político, o MPLA, então já seria possível considerar a reconciliação. Mas ela não acontece pelo toque mágico de uma varinha de condão, primeiro é preciso apurar a verdade pois, sem que esta seja conhecida não é possível passar à etapa seguinte que, tenha-se atenção, ainda não é a da reconciliação.

Então, posso concluir que a comissão foi criada para tratar apenas do assunto ”27 de Maio”, pois, só os intervenientes neste conflito podem vir a pretender, depois de observados todos os passos que uma comissão de verdade obriga, a reconciliação. A apresentação pública da Comissão também serviu para destacar nos jornais, nas rádios e televisões e onde mais calhasse, a figura de um presidente seriamente preocupado com as violações dos direitos humanos, e nesse pedestal, atenuarem ou bloquearem as ações de denúncia, uma incómoda teimosia, que temos vindo a praticar há quase meio século.

Então, exaltados os bons ofícios do presidente, reciclaram a chamada “fundação 27 de Maio”, surgindo esta com a roupagem de única e verdadeira representante dos familiares das vítimas, e por isso a única convidada a participar nos trabalhos da comissão, atirando as associações dos sobreviventes, dos órfãos e outros familiares, borda fora.

No passado dia 22 de Março descobriu-se que tinham sido entregues à equipa forense portuguesa – uma referência mundial, a quem Angola pediu ajuda e deu palco para uma dissertação sobre o assunto – os restos mortais que se esperavam vir a corresponder, depois de analisados pela antropologia forense e pela identificação genética, com as amostras disponibilizadas pelos familiares. Não deu a bota com a perdigota, não houve nenhuma coincidência.

O logro prossegue a bom ritmo e, cada cavadela sua minhoca, surgiu nos jornais uma lista imensa, uma chusma de nomes selecionados para a láurea, a ter lugar no dia 4 de Abril de 2023, o dia que o governo e o MPLA, adotaram como sendo o da paz. É um acontecimento sui generis. O que leva um governo a distinguir, sem outro motivo que não seja a mera propaganda?

O que impele o presidente da república e do MPLA a galardoar pessoas que o mesmo Estado e o mesmo MPLA atiraram para as prisões, que as torturaram e as mataram, ao mesmo tempo que recompensa os seus algozes?

É uma atitude que não se coaduna com a vontade de reconciliar, muto menos de perdoar. É uma manifestação de puro e provocatório cinismo, à falta de outro adjectivo, conceder condecorações a Nito Alves, uma vítima, e Carlos Jorge, um torcionário vil, adjetivalização que testemunhei, a quem a CIVICOP, resolveu qualificar de vítima. Mas vítima de quê, da sua própria mente perversa e retorcida?

Para esse tipo de gente existe uma outra distinção; o hospício ou a prisão. Mas não é tudo, permitam-me este assombro; a que propósito, Luís dos Passos da Silva Cardoso, que se afirma como um participante na insurreição, nome que atribui ao “27 de Maio de 1977”, mereceu a “Ordem de Mérito Militar – 3ª Categoria”, sem o ter sido a título póstumo, a condição em que todos os desaparecidos são redimidos?

Há quem tenha sido ministro no governo de Agostinho Neto, sem ter nunca ganho qualquer distinção, tão pouco se fala dele, refiro-me a David Aires Machado “Minerva”, que foi Ministro do Comércio Externo e Ministro do Trabalho e desaparecido desde o dia 27 de Maio de 1977.

Enquanto o MPLA, ou outro qualquer sucedâneo, for o responsável pelos destinos de Angola, jamais os restos mortais das vítimas do “27 de Maio de 1977” serão entregues às famílias, fazê-lo, seria um acto de contrição e o arrependimento é uma qualidade que esta gente no poder não tem, tamanha a sua arrogância, mas há outras razões:

1 – A verdade. Procurar a verdade é coisa que o MPLA, jamais fará, pois sabe, tão bem como nós o sabemos, ser tema que não lhes é favorável. Dou um exemplo: Escrevemos cartas, deixámos pedidos nas entrevistas que concedemos ao longo dos anos, escrevemos em livros e até enviamos recados ao anterior Presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, para que, na qualidade de chefe da “comissão de inquérito ao fraccionismo”, nos mostrasse o documento que elencava as provas e atestava a conclusão a que chegara o inquérito. Sabemo-lo inconclusivo, mas isso é a nossa verdade, que contrasta, como é obvio com a verdade deles. Por isso era necessário que revelassem o que ficou escrito, preto no branco, no documento, a verdadeira verdade e assim darmos por encerrado este capítulo. O que leva o MPLA a não o fazer? Não quer encarar a verdade e assim, nunca revelou o conteúdo do documento nem tão pouco respondeu ao pedido, aliás, esta conduta que privilegia a mudez é antiga, mas continua em vigor. Depois de conhecida a trafulhice que envolveu o tratamento dos restos mortais, endereçamos uma carta aberta ao presidente João Lourenço. O tempo passa e a resposta não vem, o que equivale a dizer, bem podemos esperar sentados.

2 – A antropologia forense não é uma ciência infalível, como a das séries televisivas que nos enviam dos estados unidos, mas, atrevo-me a dizer; quando os procedimentos recomendados são cumpridos escrupulosamente, é possível recuperar a identidade dos despojos humanos, o momento da morte, até mesmo a causa. Ora, o estado angolano e o MPLA sabem, tal como nós o sabemos, que não houve dignidade com a vida dos prisioneiros escolhidos para arcarem com a morte, a selvajaria da tortura antecipou sempre o empurrão para a vala, que depressa se tornou comum, e prisioneiros houve que foram lançadas ao mar. Então permitir os procedimentos adequados e seguir as boas e recomendáveis práticas forenses, pelo menos aqueles que permaneceram em terra, iria certamente pôr a descoberto o horror da morte, obra dos carrascos, verdugos que têm nome, que já lograram uma amnistia e agora, cúmulo da provocação e da arrogância, foram condecorados pelo presidente da república e do MPLA, quando deviam ter sido acusados de prática criminosa. Ora, se alguns deles já foram ministros e outros ainda o são, se também os houve e há, a ocupar um lugar no Comité Central do MPLA, para meio entendedor, meia palavra basta.

3 – Quando designamos por “desaparecidos” os nossos familiares, amigos e camaradas, dos quais ignoramos o paradeiro, este é um termo que só a nós diz respeito, não tem o mesmo significado para o Estado Angolano e para o MPLA, pois a estes basta que nomeiem alguns dos algozes, Carlos Jorge, por exemplo, e este sem hesitar apontará os locais precisos onde os escondeu, depois de os torturar e de os matar. Talvez seja por isso que nos deparamos com a condecoração do Carlos Jorge, não sabemos se pela sua boa memória e bom faro, se pelo rasto de morte que deixou, ou até mesmo pelas duas.

Então, como se viu, apenas falta a vontade, pois os atributos já lá estão todos. Pois é, mas a vontade, asseguro-vos, nunca o estado Angolano nem o MPLA a vão ter.

O governo angolano e o MPLA, bateram no fundo, já ninguém minimamente sério e no seu juízo perfeito acredita na redenção desta força política, fundada para libertar o povo das garras coloniais e criar, como se canta no hino, uma Angola renovada.

Angola avante com gente deste calibre, que venha o diabo e escolha!

José Reis

23 de Maio de 2023



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