Plataforma 27 de Maio pede criação de uma Comissão da Verdade
Não há perdão sem verdade – a convicção é de Francisco Nunes “Kudia”, um sobrevivente do 27 de Maio de 1977 em Angola. Antigo comissário político do MPLA, ele ficou mais de dois anos num campo de trabalhos forçados sem que nunca lhe tenham explicado porquê. Hoje, Francisco Nunes faz parte da Plataforma 27 de Maio que reclama a constituição de uma Comissão da Verdade.
Francisco Nunes “Kudia”, sobrevivente do 27 de Maio de 1977 em Angola, sente que “não há perdão sem verdade”. Antigo comissário político do MPLA, ele ficou mais de dois anos num campo de trabalhos forçados sem que nunca lhe tenham explicado porquê.
Hoje, Francisco Nunes faz parte da Plataforma 27 de Maio, constituída por sobreviventes e órfãos, que reclama a constituição de uma Comissão da Verdade e que, por isso, se afastou da CIVICOP, a comissão de reconciliação criada pelo governo.
A Plataforma agradeceu ao Presidente João Lourenço pelo discurso em que ele pediu perdão, em nome do Estado, pelas “execuções sumárias” do 27 de Maio, mas espera que a coragem do executivo vá mais adiante.
RFI: Pode começar por explicar-nos onde estava antes do 27 de Maio?
Francisco Nunes “Kudia”: “Eu provenho da 1ª Região Político-militar. Eu entro na 1ª Região depois do 25 de Abril numa altura em que o MPLA ainda não tinha assinado o cessar-fogo. Portanto, eu entro precisamente na última base de resistência da guerrilha na 1ª Região Político-militar.”
RFI: Ou seja, era a região do Nito Alves, a região de onde saíram supostamente as vozes mais contestatárias no MPLA. É assim?
“Não podemos dizer que a região é do Nito Alves e do José Van Dunem. Não. É do MPLA e, à partida, não há sinais de que eles sejam contestatários, pelo contrário, eu pude presenciar a fidelidade que eles tinham à linha do movimento. Nunca houve sintomas de que Nito Alves e os guerrilheiros que resistiram 14 anos naquelas dificuldades pudessem ser contestatários da linha política do MPLA. O Nito quando entra na 1ª Região, o que ele encontra é um Tratado do Marxismo-Leninismo que veio no Esquadrão Cienfuegos, vem na mochila do Comandante Valódia. Portanto, se eles vieram da 2ª Região, significa que a doutrina que imperava já no seio do MPLA não era a doutrina do Nito Alves, era o marxismo-leninismo.”
O que é que lhe acontece no 27 de Maio?
“Eu quando venho saindo da 1ª Região – eu na altura estava no Uíge que era parte da 1ª Região, tínhamos acabado de tomar o Uíge. Portanto, eu quando saio da zona de resistência da 1ª Região, eu saio com a função de comissário político de esquadrão e, quando venho para Luanda transferido, eu venho na Resistência Popular Generalizada que se consubstanciou na criação da ODP, da Organização de Defesa Popular. Estou como comissário político nacional da Organização de Defesa Popular, mas quando se dá o 27 de Maio eu já não estou – não interessa em que circunstâncias é que eu saí – já estou nas unidades de subordinação central.”
O que é que acontece a seguir? Quando é que é preso, como é que acontece esse processo, porque é que foi preso?
“Eu fui preso a 22 de Julho de 1977 porque o meu nome é citado na Informação do Bureau Político sobre os acontecimentos, está citado na página 17. Falam aqui na fase de infiltração. Então sou preso, estava em casa, sou preso em casa. De casa, sou levado para os escritórios centrais da DISA. Bom, aí começam a acontecer os interrogatórios, passo pelo ministério da Defesa, depois sou levado para a Casa Reclusão onde permaneço cerca de dois meses. Depois da Casa Reclusão sou levado pelos serviços tropa e daí sou levado para o campo que eles chamavam de reeducação do Fungo-N’hia, na Quibala.”
Fica lá até Novembro de 79. Mas antes de falarmos do campo, estes interrogatórios por que passou, a Casa de Reclusão onde esteve dois meses… durante todo este tempo explicaram-lhe porque é que estava preso? Houve algum julgamento? Percebeu porque é que estava preso?
“Não, não me deram qualquer explicação por que estava preso. Por exemplo, eu estive numa cela terrível chamada ‘cela 14’, deram-me uma injecção nos testículos e não sei quanto tempo é que estive lá. Mas nos interrogatórios que eu fui alvo, nunca me deram explicações, só queriam saber precisamente onde é que estava o Tratado do Marxismo-Leninismo que foi aquele que o Esquadrão Cienfuegos levou e onde era feito a educação ideológica de guerrilheiros. É o que eles perguntavam.”
Portanto, durante todos estes interrogatórios foi submetido à tortura?
“Não, não. Eu por acaso não fui torturado, como lhe disse, fui alvo de uma injecção que me deram e meteram-me numa cela chamada cela 14 na Casa Reclusão.”
Isso é tortura…
“Eu fui vítima é de tortura psicológica já no campo.”
O que é que aconteceu depois, então, no campo?
“No campo, fomos colocados numas casernas, fomos humilhados. A mim só me fizeram tortura psicológica.”
Em que é que consistiu essa tortura psicológica?
“Queriam retirar-me alguns bens alimentares, queriam negar-me assistência médica e medicamentosa que eu contraí uma doença da pele. Por ironia do destino, a direcção do campo tinham sido todos meus subordinados, tinham sido combatentes que também vinham da 1ª Região e que estavam no comissariado político daquela altura das FAPLA.”
Mas como é que eles faziam parte da direcção do campo e não tinham sido detidos simplesmente pelo facto de terem sido da 1ª Região Militar como você?
“Eles saíram da 1ª Região e estavam a exercer funções no comissariado político das FAPLA e quando se dá o 27 de Maio, eles também são presos e são levados em primeira instância para um outro campo correccional que era a chamada Fazenda América e da Fazenda América são postos no campo de Fungo-N’hia. É que transformaram este pessoal de prisioneiros a chefes de campo a controlarem os presos.
A tortura psicológica consistia mais em coisas que me chocavam no interior. Depois é que passaram para tortura numa cela pequenina onde passei duas noites.”
O que é que se passou nessa cela?
“Era uma coisita pequenina, quase que nem me conseguia movimentar, a comida era dada numa janelinha e como aquilo era uma zona um bocadito quente naquela altura, as paredes começaram quase que a jorrar gotículas de água.”
Quantas pessoas estavam no campo?
“Aquele campo era um campo onde depositaram militares e estiveram lá estudantes que vieram da União Soviética e de Cuba que se juntaram aos militares que já tinham estado em diversas cadeias. Havia muita gente e qualquer um de nós que fomos para lá nem processo sequer tínhamos. Foram simples relações nominais.”
Disse-me que foi preso porque o seu nome aparece citado na Informação do Bureau Político como um dos nomes na base dos acontecimentos do 27 de Maio. Você esteve implicado em alguma coisa no 27 de Maio?
“Não, que eu saiba não. Digamos, o meu problema foi uma troca em volta de um debate ideológico com o senhor Lúcio Lara. Ele incarnou isto mal. Quando se dá o 27 de Maio e ante a informação do Bureau Político, ele interpela um companheiro meu e pergunta se o Kudia já está preso. É o próprio Lúcio Lara que pergunta.”
Em relação ao que se chamou tentativa de golpe de Estado. Esta foi a informação oficial, há muita gente que diz que não houve. Houve ou não houve tentativa de golpe de Estado?
“Não sei se algum dia leu uma ordem assinada pelo então ministro da Defesa Henrique Teles Carreira. É uma ordem do ministro em Luanda em 23 de Julho de 1977. Ele expulsa das FAPLA – e dá o título – ‘traidores, fraccionistas do 27 de Maio’ e são expulsos três comandantes e, os outros que eu tenho conhecimento, são tenentes e segundos tenentes. No preâmbulo, ele diz ‘por terem dirigido ou participado na tentativa de golpe de Estado do 27 de Maio contra o comité central, o governo da República, o camarada Agostinho Neto, Presidente do MPLA e da República de Angola e Comandante-em-Chefe’. Ora, é de perceber o quadro institucional em que se encontrava já Angola – Angola já tinha uma Constituição que foi aprovada em 8 de Novembro pelo Comité Central do MPLA e entrou em vigor no dia 11 de Novembro. Na Constituição, naquela altura, não se fala em nenhum momento que o comité central era órgão do governo. E eu remeto isso à sua reflexão…”
Ou seja?
“Não há tentativa de golpe de Estado. Se houvesse tentativa de golpe de Estado, quem haveria de assumir o comunicado dos acontecimentos não seria o Bureau Político, seria o conselho da revolução que é o órgão que substituía a assembleia do povo que não estava constituída. É preciso compreender esse quadro constitucional daquela época e não tirar do contexto.”
Há historiadores e sobreviventes que sustentam que a morte dos comandantes a 27 de Maio – invocada até pelo Presidente João Lourenço no discurso de perdão deste ano em que ele disse que o grupo que tentou o golpe de Estado matou altas figuras do poder – ora há quem diga que isso teria sido autoria de pessoas ligadas à segurança do Estado para desencadear a purga que se sucedeu. O que aconteceu?
“Penso que foi um pretexto, mas é preciso encontrar a verdade e nós temos um elemento muito importante a ser investigado. A ambulância que levou os comandantes tem a matrícula AAI 64 53. Ora é preciso ir-se à conservatória dos registos de automóvel e saber quem é proprietário desta viatura e a gente vai começar a esclarecer. Não foi a mando dos supostos fraccionistas.”
Os comandantes apareceram calcinados numa ambulância. Está a dizer que esta ambulância pertenceria a quem?
“É preciso ir-se à conservatória dos registos automóveis e saber se a ambulância de matrícula AAI 64 53 era pertença de quem.”
Porque não era pertença dos supostos fraccionistas, é isso?
“Não, não. É preciso encontrar o proprietário desta ambulância.”
Mas tem noção de quem seria?
“Não, eu não tenho noção.”
Faz parte de uma associação de sobreviventes que integra a Plataforma 27 de Maio. Pode apresentar-me a Plataforma?
“A Plataforma foi constituída precisamente para ser uma parceira da CIVICOP no âmbito do processo da resolução dos conflitos políticos. Houve um determinado período que a Plataforma apresentou dados princípios, como o princípio sobre a verdade histórica com uma investigação isenta e célere feita por historiadores e especialistas para a revisitação da história oficial do processo do 27 de Maio. O que até aqui existe é a versão oficial.
Nós também dizíamos que era preciso identificar os responsáveis dos desaparecimentos forçados e o desejo de localização das vítimas. E, também, os agentes de repressão, na nossa visão, não devem ser considerados vítimas como é expresso pela CIVICOP.
Temos aqui determinadas discordâncias relativamente à forma como a CIVICOP quer implementar o processo de reconciliação nacional. Por exemplo, mesmo que se queira levar um genuíno processo, mesmo quando foi a resolução do conflito militar, a UNAVEM estabeleceu um princípio em que eles diziam que é impossível esquecer e as pessoas têm que conhecer o direito à verdade. Veja bem, se ler o anexo 6 do princípio geral das recomendações da UNAVEM naquela altura já dizia que as pessoas tinham que conhecer a verdade, senão não havia uma reconciliação sólida.”
Vocês pediram que se crie uma comissão da verdade, é isso?
“Sim, nós pedimos que se crie uma comissão e reiterámos isso. E não só. É preciso também definir uma tarefa central que é a comissão de averiguação dos óbitos, com a localização dos restos mortais, mas um processo com transparência. Nós, neste momento, nem conhecemos os procedimentos que estão a ser usados.
“Já agora, nós sentimo-nos regozijados – porque em 8.01.2021 fizemos uma intervenção na última reunião da CIVICOP – e estamos satisfeitos e agradecemos de coração ao chefe do executivo por ter-nos ouvido. Naquela altura, nós dissemos que o Presidente deveria fazer uma mensagem à Nação em nome do MPLA, pedindo desculpas na qualidade de Alto Magistrado da Nação e essas desculpas não eram só às vítimas mas também às respectivas famílias. Por isso é que nós, nos nossos últimos pronunciamentos, dissemos que estamos regozijados com a atitude de sua Excelência o Presidente da República João Lourenço.”
Mas querem mais, querem a Comissão da Verdade, não é assim?
“Sim, nós precisamos da Comissão da Verdade. Mesmo no conceito religioso, quando é que lhe é perdoado o pecado? Vai ao confessionário e confessa o seu pecado e ali lhe é dada absolvição. Ora, nesta Comissão da Verdade, os algozes têm que confessar, não no sentido penal mas dentro de uma justiça reparativa.”
Você perdoou por aquilo que se passou consigo e com todos os companheiros que perdeu nessa altura?
“Enquanto eu não souber a verdade, eu não posso lhes conceder o perdão, mas eu falo até com eles, por uma questão de educação, uma questão cívica, eu cumprimento-os. Mas eles têm que expressar porque fizeram isto aos seus companheiros.”
Está a dizer que cumprimenta as pessoas que o torturaram?
“Sim, eu cumprimento as pessoas que me aplicaram a injeção. Eu cumprimento as pessoas que eu vi a torturar os meus companheiros, por exemplo, no Campo de Fungo-N’hia, eu vi-os torturados e metidos em buracos depois de caminharem, com a roda dentada.”
A Plataforma já não está dentro da CIVICOP?
“Nós saímos enquanto a CIVICOP não siga a metodologia que é recomendada pelo princípio de Justiça Transicional da União Africana. Lá tem princípios e Angola aderiu a esta convenção e um dos princípios é o princípio da impunidade.”
Pode ouvir todas as entrevistas desta série aqui.
Carina Branco – RFI