Quarenta e oito anos sem pai, mãe, filho ou filha

Quarenta e oito anos sem pai, mãe, filho ou filha

Dia 27 de Maio de 1977.

Quarenta e oito anos. Para uns, mais um dia normal. Para outros, uma data marcada pela dor: 48 anos desde a purga no seio do MPLA, em Angola, que afectou de forma indelével dezenas de milhares de pessoas. Presos sem acusação, torturados, punidos sem julgamento, desaparecidos sem que até hoje se saiba o seu destino.

Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, no estudo Purga em Angola – o 27 de Maio de 1977, referem entre 20.000 e 80.000 mortos. A própria DISA admite 15.000. Mesmo uma média de 30.000 mortos representa dez vezes mais do que no Chile de Pinochet.

Desaparecimento forçado é crime. Quando generalizado e sistemático, é crime contra a humanidade, à luz do direito internacional.

O 27 de Maio afectou milhares de famílias: filhos sem pais, pais sem filhos. A separação causa danos mentais, físicos e morais profundos, especialmente em crianças. Para os que ficaram, é uma dor diária. Uma ausência que se repete todos os dias. A dor de não saber. A dor de não poder enterrar. A dor de não poder esquecer. Feridas que o tempo não cura porque nunca foram fechadas.

Quarenta e oito anos. O desaparecimento forçado não termina quando o corpo desaparece, Continua na vida de quem fica. O trauma passa de geração em geração. E a impunidade transforma-se numa segunda violência: a do esquecimento, da negação, da indiferença.

Porque não foi investigado? Porque não é investigado? Intuo – mas não tenho – a resposta. E não é a mim que cabe dá-la. É a quem pode e deve investigar. O Tribunal Penal Internacional não tem jurisdição sobre Angola, uma vez que o país não é parte do Estatuto. Angola não ratificou a Convenção da ONU sobre Desaparecimentos Forçados. Recusa o mecanismo de queixa que permitiria às vítimas aceder a instâncias internacionais de escrutínio imparcial. Porque não o faz?

Tem jurisdição o Estado onde tudo aconteceu – Angola. E terão os Estados da nacionalidade das vítimas onde também se inclui Portugal. Quantos portugueses desapareceram? Têm jurisdição, porventura, Estados que possam investigar ao abrigo da jurisdição universal. Não é, no entanto, possível investigar de forma efectiva sem Angola o querer.

Quarenta e oito anos. O Estado angolano, responsável pelos actos, tem o dever de prevenir que se repitam. Mas, até hoje, segundo a Amnistia Internacional, continuam a existir desaparecimentos forçados em Angola.

O Estado angolano tem de reconhecer publicamente os desaparecimentos, permitir investigações independentes, céleres, exaustivas e com participação das vítimas. Investigações que devem envolver organismos internacionais, com experiência e credibilidade.

A realidade actual é o oposto. Em 2021, o Presidente falou publicamente pela primeira vez – uma esperança efémera. As vítimas continuam ignoradas, enquanto responsáveis são condecorados. O suposto processo de reconciliação iniciado não é digno desse nome. A comissão criada para o efeito (Civicop) não é verdadeiramente um mecanismo que satisfaça aquelas exigências decorrentes do direito internacional e mesmo do próprio direito interno constitucional angolano.

O mandato da Civicop exclui busca da verdade, responsabilização, reparação ou reforma institucional. Inviabilizada fica assim, à partida, qualquer tentativa séria de reparação e reconciliação e de honrar a memória das vítimas.

A Comissão é controlada por membros do Governo e serviços de segurança. Exemplo a mostrar a parcialidade da sua actuação: agentes da DISA, responsáveis pelos crimes, são considerados também vítimas.

Existe total falta de transparência não se encontra online qualquer informação técnica, legal ou procedimental. Vítimas que questionam são apartadas.

Entrega de ossadas de familiares que, após análise independente de ADN, não correspondiam de todo aos desaparecidos a que alegadamente pertenciam.

Exumações exibidas em directo, sem respeito por procedimentos técnicos nem pela dignidade humana. Imagens sensacionalistas, com retroescavadoras arrancando restos humanos como se fossem entulho.

Vítimas sob vigilância e intimidação. O medo ainda é real. É por isso que tão poucas vozes se pronunciam.

Estas práticas violam o direito à verdade, a dignidade das vítimas, o direito a um processo equitativo e de acesso à justiça e a uma investigação efectiva, conforme estabelecido no direito internacional dos direitos humanos, e na jurisprudência do Comité contra os Desaparecimentos Forçados e o Comité de Direitos Humanos da ONU.

Não é surpreendente. Como esperar que um regime se investigue a si mesmo?

A experiência internacional mostra que comissões de verdade politizadas, sem independência, não cumprem o seu objectivo. A instrumentalização do sofrimento das vítimas e a falta de garantias mínimas legais apenas perpetuam o trauma individual e colectivo.

Quarenta e oito anos. Se o regime clama já não ser o mesmo, se pretende romper com o passado e afirmar-se como Estado de direito, então que viva de acordo com a sua palavra. Que crie uma genuína Comissão de Verdade e Reconciliação, com mandato abrangente, composição independente, participação da sociedade civil e entidades internacionais credíveis, como a Cruz Vermelha internacional, com experiência demonstrada na matéria.

A impunidade institucionalizada não viola apenas os direitos das vítimas, mas também compromete o futuro democrático do país. Não se trata de reabrir feridas: trata-se de finalmente permitir que possam cicatrizar com verdade e justiça.

Intenções demonstram-se com acções. Palavras leva-as o vento.

É tempo de actuar – em Angola, em Portugal, na comunidade internacional.

Todos podemos ajudar. Questionar. Divulgar. Pressionar. Para que não cheguemos aos 50 anos com a ferida aberta.

Vânia Costa Ramos

  • Advogada admitida a exercer perante o Tribunal Penal Internacional 
  • Presidente da Associação Europeia de Advogados Penalistas (ECBA)
  • Especialista em direito europeu e internacional e direitos humanos
27 de Maio - 48 anos

Vânia Costa Ramos in Público


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