23 de Março de 1978 – VIAGEM SEM REGRESSO

Em memória de CHICO ZÉ e ADEMAR VALLES

23 de Março de 1978 – VIAGEM SEM REGRESSO

“O COMBOIO

…vivíamos confinados num sector da cadeia ao qual demos o nome de «comboio», por causa da disposição das celas ao longo de um comprido corredor. Uma enfiada de celas de cada lado, nenhuma porta frente a frente…
(“São Paulo, Prisão de Luanda”, Carlos Taveira (Piri), 2019, Guerra & Paz, pág.41

…permanecíamos o dia inteiro nesses cubículos, praticando a meditação e lendo as paredes que nos falavam, através de marcas deixadas pelos anteriores pensionários. A distribuição da comida era feita pelos guardas, aos quais alguém tinha dado o nome indecifrável de «conduzes» …
(“São Paulo, Prisão de Luanda”, Carlos Taveira (Piri), 2019, Guerra & Paz, pág.42)

 “OS ENCONTROS”

Testemunho de José Fuso

Antes de me levarem para o “comboio“, passei cerca de um mês na cela “F” , uma cela colectiva, e foi ali que conheci um dos protagonistas dos encontros que relato hoje; o Ademar Valles. Por ordem de Onambwe, chegou à cela “F”, acompanhado por um “conduz” e trazendo um colchão de espuma debaixo do braço. Juntou-se a um amigo comum, que já dividia o seu colchão comigo. Assim, juntámos os dois colchões e ali passamos a dormir os três.

O Ademar, irmão mais velho da Sita Valles, era na altura Director Nacional da Indústria Pesada. Conheci o Ademar no pior momento das nossas vidas. Uma noite fui levado para interrogatório numa das salas anexas ao “comboio” e por fim, já “maltratado”, fui “atirado”, primeiro para a cela “5”, seguindo-se a cela que ficava dentro da “sala dos banhos”, com pouco espaço para duas pessoas. Nessa cela encontrei o Rui Lopes, meu amigo e colega da universidade. Era a única cela que ficava dentro da “sala dos banhos”, situada numa das extremidades finais do comboio, onde por vezes os conduzes levavam os presos para tomar banho com água provisionada em latas. Havia aí uma porta de ferro, sempre trancada, que dava acesso às salas de interrogatórios, contíguas, de onde provinham os gritos das torturas infligidas. As saídas e entradas do “comboio” faziam-se pela outra extremidade, ou seja, pela única porta que dava para o pátio. Através do postigo da nossa cela, conhecemos muitos dos ocupantes do “comboio“. Essa cela não tinha mais do que 4 m2. Davam-se dois passos e o nosso pé já estava dentro do sanitário turco do chão, que estava sempre com muita água o que nos obrigava permanecer o tempo todo nos beliches de betão.

Um dia um “conduz” levou-nos aos dois para uma cela de 4 pessoas que ficava a meio do corredor. Juntámo-nos então ao Chico Zé e ao João Carlos. O João Carlos era meu colega na faculdade de economia. O Chico Zé, que conheci no “comboio“, já estava detido em São Paulo antes do dia 27 de Maio de 1977, foi solto durante a libertação dos presos e regressou dias depois à cadeia. Era um jovem alegre, bem-disposto, bom conversador, por vezes ligeiramente gago, cheio de vontade de viver e sair dali para fora. Também me ecoa o seu cumprimento cordial de ”primo”. Ficamos bons amigos, nunca o esqueci e a sua recordação tem-me acompanhado desde então. O João Carlos era o nosso mestre do bridge e dos outros jogos de cartas. Também tínhamos peças de xadrez esculpidas em sabão azul, quase todas feitas pelo Rui. Ali partilhámos momentos de solidão e sofrimento.

Um dia levaram-nos aos quatro para uma cela colectiva, a “Siga de Cima”. Ali respirávamos melhor. O Rui ficou, se não me engano, no grupo do Cacuaco e nós os restantes ficámos num outro grupo com o saudoso mais velho, Congo Sebastião, Comissário Provincial do kwanza Norte. No dia 23 de março de 1978, passara já quase um ano desde os acontecimentos de 27 de Maio de 1977, tudo parecia ironicamente mais calmo em São Paulo. Era uma tarde cheia de sol e fomos brindados com uma ida ao pátio. Os mais apressados correram para dar uns chutos na bola. Eu desci em conversa com o Chico Zé, e já no pátio, deu-se um novo encontro. Ali estava o Ademar Valles, sozinho, sentado num banco a apanhar sol e acompanhado da sua bomba para a asma, de que sofria. Apresentei-os, ausentei-me e deixei-os a conversar. Por fim recolhemos às celas. A meio da noite desse dia 23 de Março de 1978 fomos acordados com o barulho da porta da cela a abrir e com os berros de um “conduz“…Chico Zé vem! Traz as tuas coisas! …”. Na cela “F” também chamaram o Ademar Valles. E assim, no dia em que se conheceram partiram juntos e não soubemos para onde… Nunca mais os vimos…, com eles foram nessa noite muitos outros. Foi uma noite terrível. 

Testemunho de João Carlos

Fui levado para a cela “5” no “comboio” depois de mais um interrogatório. Era exígua, húmida e imunda, e só tinha uma serapilheira no chão. Quando me deitei vencido pelas dores e cansaço, só cabia na diagonal… encolhido! No dia seguinte levaram-me para uma cela maior, com beliches de cimento, 2 de cada lado, onde conheci o seu jovem ocupante, que se revelou um grande camarada e amigo nas largas semanas que compartilhamos os calabouços: o Chico Zé! Eu nada mais tinha do que a roupa que vestia, e não tinha apoio exterior para roupas ou comida que por vezes deixavam entrar na cadeia, e o apoio altruísta do Chico Zé foi muito importante.

O Chico Zé era um jovem com um espírito vivo e uma atitude positiva, o que ajudava imenso na nossa estabilidade emocional. No “comboio” tivemos momentos menos maus, quando conseguíamos sair das celas abrindo a tranca pelo postigo, permitindo algum convívio com os demais e até conseguir tomar duche extra (quando havia água!) na “sala dos banhos“.  Depois começaram a colocar cadeados, o que impossibilitou (temporariamente) essas saídas. Então, a vingança foi começar a pôr areia nos cadeados… Como não os conseguiam abrir, tinham de os rebentar!

O Chico Zé gostava de cantar, embora sabendo várias letras e músicas, mas “um pouco desafinado”, mas, empoleirados nos beliches de cima ao final do dia, era um momento nostálgico que nos transportava para lá dos muros prisionais. A transferência para a “Siga de Cima” manteve-nos juntos, numa amizade solidificada numa adaptação à vivência num pequeno espaço confinado, e, quando já pensávamos viver num ambiente mais desanuviado, levaram-nos este ainda tão jovem companheiro para um destino desconhecido, o que nos abalou profundamente. Sabíamos que um dia também poderia ser o nosso destino.

“EPÍLOGO

  • Quem mandou matar a 23 de Março de 1978? 
  • Porque se continuou a matar um ano depois da tragédia de 27 de Maio? 
  • A Verdade sobre a noite de 23 de Março de 1978 continua por apurar! Quantos morreram nessa noite e onde foram enterrados? Onde estão os seus restos mortais?
  • Em quantos locais jazem ainda os restos mortais dos que foram mortos?
  • A verdade relacionada com os acontecimentos de 27 de Maio de 1977 foi até hoje varrida para baixo do tapete! A CIVICOP nada fez para o esclarecer! 
  • Desde quando Angola faz testes de ADN em ossos? 
  • Onde comprou Angola essa tecnologia e o seu Know-how? 
  • Urgem respostas a estas perguntas! 
  • Não há Reconciliação sem Verdade!

José Fuso

28 de Março de 2024



Sugestões

2 Respostas

  1. Luís Caetano KAPAS diz:

    Grande Jornalista Rasgado eu tenho um grande sentimento na sua pessoa trabalhei no aeroporto sempre que viate no terminal doméstico em trânsito para Benguela éu deitava lágrimas por perderes dois irmãos no processo histórico do 27 de Maio 77 falando do Huambo na vala comum estão vários corpos. Sito comissário Gandhi e o capitão Kejiba e a família Caposo grande abraço do meu coração ❤️💓❤️ ai meu Deus grande abraço meu irmão são minhas palavras que tem para dizer

  2. Rui Tukayana diz:

    Obrigado por partilharem estas memórias.

    Um abraço ao Chico Zé e ao Ademar Alves.
    Que estejam em paz.

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