27 de Maio de 1977 – O Silêncio dos Culpados

27 de Maio de 1977 – O Silêncio dos Culpados

Será engano de título e vai-se antes falar do “silêncio dos inocentes”?!

Não, não se trata desse filme que se estreou no festival de cinema de Berlim e que se tornou num dos filmes mais premiados dos óscares nas categorias de melhor filme, melhor director, melhor actor, melhor actriz e melhor roteiro adaptado, melhor edição e melhor som! 1

O silêncio dos culpados é, infelizmente, o que podia ser o título de outro filme que se inspiraria numa história real, ou seja, é a realidade objectiva da narrativa de 45 anos que, o MPLA, através do Estado e mais recentemente o Estado, através da CIVICOP, impôs aos sobreviventes e em especial aos familiares dos desaparecidos forçados que foram assassinados entre 1977 e 1980. Esta terminologia (desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais), é apropriada e internacionalmente aceite, nada tem a ver com as propaladas lengas-lengas de reconciliação sem verdade e justiça, dos abraços a criminosos e do perdão a quem nunca mostrou o menor sinal de arrependimento e que foi divulgada pela CIVICOP nos últimos anos até à exaustão, com o beneplácito das Igrejas.

Afinal, quando o Sr. Presidente da República, General João Lourenço, pediu perdão aos familiares das vítimas em 2021, em nome do Estado, e não do MPLA, este último (o MPLA), pretendia mesmo continuar calado, como anteriormente já o fizera durante décadas. Queria o silêncio dos culpados e que as vítimas perdoassem sem pestanejar e se calassem também de vez, ao que, infelizmente, alguns acederam na última hora, e outros, foram preparados, atempadamente, para o fazer na altura pretendida (leia-se Fundação 27 de Maio).

Mas, tal pretensão não ocorreu do lado de alguns culpados. Logo surgiram muitos livros e declarações de culpados (alguns dirigentes), retomando retóricas antigas, que além de as terem ajudado a construir e veicular até à exaustão, nessa ocasião, as quiseram manter, 45 anos depois, fazendo de mentiras mil vezes repetidas, “verdades” assumidas para não perderem a face construída com essas falsidades. Uns, vieram gritar junto das campas dos malogrados comandantes que, os culpados e inocentes não deveriam estar juntos (sem que de facto lá estejam), como se, os que mataram uns e outros, não tivessem sido os mesmos. Outros, vieram dizer que, nunca entraram nas cadeias, nem mesmo em nome do MPLA, embora por lá fossem vistos por muitos presos, que ajudaram a prender, mas, tinham o poder de indicar homens para a segurança de Estado e dizem ter sido grandes chefes na universidade. Como todos sabemos eram grandes kambas dos repressores, comendo no mesmo prato. Pelo menos Pepetela, teve a hombridade de reconhecer ter lá estado, em nome do MPLA, para seleccionar depoimentos (arrancados) para publicitar na campanha de adormecimento dos factos realizada na época e capitaneada por Costa Andrade (Ndunduma). Esse, um dos mentores chefes na preparação do clima tóxico nos meios de difusão que criaram a narrativa propícia ao verdadeiro golpe dos vencedores.

E assim o silêncio dos culpados não aconteceu na totalidade, mas é de facto muito pretendido.

Do nosso lado, as vítimas, o silêncio não está no nosso ADN, não somos culpados e nunca acontecerá enquanto por cá andarmos em vida. Sim, nós as vítimas, pois não nos venham dizer que os criminosos também são vítimas. Seria uma traição aos que partiram do nosso lado, nas prisões e nos campos, aceitar a versão cozinhada pela CIVICOP, sem condimentos, sem recipientes e muito menos sem bons chefes de cozinha. O MPLA fica assim sozinho em silêncio, mandando calar os que o romperam inopinadamente e ou agradecendo-lhes por ele próprio não conseguir falar ou não lhe ser conveniente proferir tudo.

Com este silêncio dos culpados, surgem também novas vozes, ruidosas, certamente com os seus motivos válidos, mas querendo capitalizar excessivamente o “processo 27 de Maio”, e assim, mais uma vez, a confusão fica instalada e serve na perfeição o silêncio dos culpados e até eles mesmos poderão ainda querer vir a assacar-nos responsabilidades que, não temos, e para as quais nunca trabalhámos. O silêncio dos culpados sempre foi uma forma de fugir às responsabilidades, de não assumir culpas, não corrigir trajectórias e não construir futuros menos incertos. Passar um legado, não tratado, às gerações que não viveram a época em que ocorreram essas tragédias, é pura cobardia e criminosa intenção. Essas gerações, só conseguirão tratar essas tragédias passadas com base em pressupostos dos dias de hoje (e por vezes mal digeridos), o que, não permitirá nunca a resolução dessa herança fazendo jus ao contexto da época. Ou seja, quem tem o poder, o MPLA, quer manter o silêncio dos culpados para eternizar uma culpa alheia construída com falsidades e com gente que se quer perpetuar com falsas aparências e assim adormecer a sociedade.

Que triste futuro que é hoje este presente!

Onde ficaram, no percurso, os Nacionalistas Democratas Revolucionários de outrora?

Como reagem as forças vivas da sociedade a este silêncio dos culpados?

Tenho ouvido dizer de muita gente, ao longo dos anos, que “o MPLA é sempre o mesmo”. Certamente haverá um padrão comportamental transmitido sequencialmente, nos métodos, nas manhas, nas idiossincrasias das famílias criadas à volta da elite dirigente, na forma burocrática de exercício de poder de Estado, na ausência de clarificação ideológica, etc. Claro que terei de concordar que, tendo-se perpetuado sempre no poder, ao longo de quase 50 anos, é fácil e redutor dizer-se que o MPLA é o mesmo. Eu vejo-o, porém, metamorfoseado para a frente e para trás. Até a sigla antiga foi retomada e não foi mesmo por acaso a meu ver. Foi conveniência em não assumir uma natureza ideológica clara e em não clarificar outras pretensões, ou seja, dissimular ideologia na lógica do silêncio dos culpados. Quando os ideais propalados fraquejaram no contexto mundial (e no II Congresso extraordinário de 1991) e a opção de ser MPLA-PT foi abandonada, ou seja, deixar de ser dos trabalhadores (assumida antes em Dezembro de 1977 no I Congresso), porquê voltar para trás no nome? Porque isso era de extrema necessidade para manter o silêncio dos culpados. Desde 1977 que a maioria dos defensores dos trabalhadores foram passados pelas armas ou relegados para posições longe do poder. Afinal já há muito que o PT acabara.

A sigla inicial MPLA, ao ser mantida ainda hoje, a meu ver, não faz justiça à história e à memória dos homens que por esse ideal deram os melhores anos da sua vida e mesmo a própria vida. É uma forma de manter a indefinição político-ideológica que claramente serve o desígnio de persistir em manter o silêncio dos culpados.

Tenho que concordar com a seguinte afirmação premonitória 2:

“(…) se nós continuarmos a consentir que o nosso partido, o nosso governo, tenha uma predominância de elementos da pequena-burguesia, ou influenciados pela pequena-burguesia, o que vai acontecer daqui a dois ou três anos? O que vai acontecer é que nós vamos mudar de orientação com as mesmas palavras de ordem, não cumprir com aquilo que foi determinado pelo nosso Congresso e nós voltaremos a uma fase de capitalismo não confessado. Nós não temos em Angola uma burguesia com poderes. Não temos, mas podemos ter no futuro, se não tomarmos cuidado. Ora, o que nós queremos é que os operários e camponeses tenham o poder e não a burguesia. O mais importante é resolver os problemas do povo. A luta continua! (…)”

(Agostinho Neto, discurso no Lubango em 27/07/1979)

Em conclusão

O MPLA ao manter o silencio dos culpados perdeu a sua grande oportunidade de contar com as organizações das vítimas para a solução nacional do “processo 27 de Maio” quando estas se prontificaram a iniciar um trabalho conjunto no âmbito das comissões de verdade. Dificilmente o MPLA voltará a merecer a credibilidade necessária para resolver esse passivo. Não houve respeito, não houve seriedade, não houve vontade política. Direi mesmo que, houve até talvez acção criminosa consentida (de quem não sei) ao entregar restos mortais com 20 anos dizendo serem de desaparecidos de há mais de 45 anos. Isto não é crime?

Em suma o MPLA optou por perpetuar o silencio dos culpados.

Os culpados andam por aí.

1) https://isjornal.com.br/filmes-mais-premiados-do-oscar/ (extraído a 22 de Maio 2023)

2)Discursos Agostinho Neto – Luanda 1980, DEPPI (Departamento de Educação Politico-Ideológica, Propaganda e Informação)

José Fuso
23 Maio de 2023


27 de Maio - 46 anos

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