A Teoria da Culpa Colectiva
Não encontro palavras para exprimir a terrível indignação que me inspira a teoria ultimamente posta a circular por determinados sectores da intelligentsia angolana, segundo a qual é um erro continuar a mostrar o que foi a “grande loucura” do 27 de Maio atento os estragos que pode causar ao processo de reconciliação nacional. Para os cérebros e divulgadores dessa teoria é inadequado falar em vítimas e carrascos quando de um lado e de outro desse trágico conflito se hastearam bandeiras de ódio e se imolaram pessoas. Todos carregam responsabilidades, todos foram culpados, eis o que sugere a argumentação dessa classe bem pensante que diz ser melhor quebrar as cadeias desse passado, esquecer tudo e perdoar os crimes então cometidos.
É imoral e obscena esta explicação que se dá dos acontecimentos, nomeadamente a proposta de se conceder a todos um “generoso perdão” como se alguma vez Nito Alves e os seus prosélitos tivessem cometido crimes de lesa humanidade. Ou que o autor deste trabalho e outras pessoas que com ele estiveram nas prisões e morreram fossem culpadas de factos ofensivos. Que se saiba, os crimes que ensanguentaram o país e o mergulharam numa intolerância radical durante dois anos e meio foram praticados [de forma metódica e ininterrupta] por agentes do Governo e do Estado, e também por militantes e cúmplices de um bando conspirador do MPLA, no contexto do que Herbert Kelman e Lee Hamilton cunharam de “massacres autorizados”, já que até hoje não se pediu contas a ninguém dos seus actos. Alguns até continuam impantes a mover-se pelos interstícios do Poder e a tecer intrigas políticas.
Manda o bom senso que se tenha presente uma circunstância: nas três ou quatro horas que durou a suposta tentativa de golpe, era impossível aos chamados nitistas [para usar a designação oficial] exercer sobre os rivais alguma violência sanguinária. Eles não tiveram o controlo da capital e nunca a lista das suas vítimas foi divulgada, salvo a dos dirigentes mortos dentro da ambulância. Mas até este caso levanta objecções, pois que ultimamente apareceram ex-militares a denunciar cúpulas da Segurança do Estado e das Forças Armadas que estariam envolvidas na conspiração para matar Nito Alves e outros comandantes.
Deste modo, a tentativa de demonizar as vítimas serve agora aos novos promotores da ideologia da paz para desculpar a insana maldade dos assassinos e retirar legitimidade moral aos movimentos cívicos e às famílias que exigem o apuramento de responsabilidades sobre o sofrimento causado a tantos compatriotas que foram sequestrados e privados da sua liberdade sem prova alguma. Quase todos padeceram punições inumanas e cruéis. Uns foram arrancados de suas casas noite adentro pelos corpos repressivos da ditadura e espancados selvaticamente diante da mulher e dos filhos; outros foram transferidos clandestinamente de uns cárceres para outros sem deixar vestígios; outros perderam a vida brutalizados pelos seus verdugos que os mataram a sangue-frio como animais. Neste redemoinho de violência e morte, Angola parecia estar tomada pelo espírito das trevas, pelo terror total que amortalhou a sociedade e transformou o suspeito em culpado e o condenou ao fuzilamento sem direito a defesa. Parafraseando o poeta russo Ossip Mandelstam (1891-1938), ninguém sabia se chegava até à madrugada seguinte, as noites eram então dormidas no caixão. Vítimas houve cujas sentenças só vieram a ser pronunciadas depois das execuções.
A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) lembra que no movimento de terror […] a culpa e a inocência viram conceitos vazios; “culpado” é quem estorva o caminho do processo natural ou histórico que já emitiu julgamento quanto às “raças inferiores”, quanto a quem é “indigno de viver”, quanto às “classes agonizantes e povos decadentes”.
O terror manda cumprir esses julgamentos, mas no seu tribunal todos os interessados são subjectivamente inocentes: os assassinados porque nada fizeram contra o regime, e os assassinos porque realmente não assassinaram, pelo contrário executaram uma sentença de morte pronunciada por um tribunal superior.
Não subsistem dúvidas sobre quem espalhou o hálito da morte pelo país, quem atentou contra a vida de milhares de pessoas e quem violou as leis e as instituições. De acordo com um plano rigorosamente definido muito antes do 27 de Maio, o intento de algumas camarilhas foi exterminar uma boa parte dos seus oponentes internos, apelidados de grupo anti-Movimento [ou fraccionistas], e para isso açularam os seus fáctotuns [ou “cães de guerra“] que espalharam o pavor por todo o lado. Felizmente este plano homicida acabou por não se consumar por inteiro, mas mesmo assim o que sobra dele – por desaparecimento de milhares de pessoas – são cinzas malignas e perturbadoras.
Logo tratar estas coisas com condescendência, ou querer mitigar a barbárie assassina, ou convertê-la em inocência, quando o que “os homens fizeram a homens não tem nome”, é no mínimo da parte dos cabalistas da culpa colectiva um gesto perverso, despudorado. Equivale à falsa propaganda que diz não ter havido Holocausto ou que a culpa se repartiu por judeus e nazis. O 27 de Maio com as suas atrocidades não é uma estória ficcional que se possa afogar no esquecimento, e sim um drama nacional tão aviltante que o seu conhecimento é um imperativo para as novas gerações, sob pena de se estar a incorrer noutro delito maior que é a destruição da memória histórica, o apagamento do nome dos sacrificados e a imposição de um “passado único” [o dos vitimários].
Claro que depois das prisões e das matanças houve vida para muitas vítimas [que estão aí para contar e testemunhar o que viram e sofreram], porém não é só isso que conta. O importante é a lembrança desse inferno e dessa dor para se aprender a superar a violência, os rancores e o fanatismo e construir um sistema político liberto de tutelas e exclusões partidárias e civis. A dor, como recorda o escritor argentino Ernesto Sabato, “é também um património dos povos […], um valioso e sagrado património a que cabe ser fiel”. Seguir, portanto, na esteira dos que entoam hinos ao esquecimento é negar essa dor e a história dos desaparecidos e sobreviventes, é contribuir para que o 27 de Maio se venha a deformar totalmente e o seu herói acabe por ser, exactamente como n’O Processo de Kafka, o olvido […] cujo principal atributo é esquecer-se a si mesmo. Não me parece que esta última fórmula auspicie a tranquilidade do país. O que chamam de paz não é senão o rosto granítico do silêncio. Só abrindo o livro da verdade e da justiça se apagarão as nódoas do horror e da vergonha que cobrem o Estado angolano.
Carlos Pacheco
Historiador angolano
Já assinei a petição e espero que muitos mais o façam.
Esta teoria existe e corre veloz. Também eu já o confirmei. É particularmente nefasta quando arregimenta amigos que prezamos. Cabe-nos, a todos os indignados, fazer com que essas pessoas leiam o que aqui se escreve. Foi o que eu fiz no meu blog, num pequeno comentário onde, para além da divulgação deste site, digo uma das “justificações” que ouvi em Angola :
“Na História nada constará. As vítimas dos fuzilamentos (que não houve, segundo a História oficial) continuarão insepultas. Da História constará, talvez, aquilo que me disseram outros presos na cadeia da DISA, no Uije em 1978: que “aqueles camaradas foram mandados para a colheita do café”. Longa, a colheita!…”