Olhar Maio de 1977

Olhar Maio de 1977

Contexto Histórico

Pouco tempo se passara do fim do colonialismo, conquistáramos a nossa Independência, proclamáramos a República Popular de Angola, o MPLA assumira as rédeas do governo no Estado Angolano. Fôramos, antes, invadidos pelos países vizinhos, a racista África do Sul e o Zaire, com o apoio dos Estados Unidos da América que pretendiam impedir-nos de o fazer. A vitória do MPLA foi conseguida com o enorme concurso, em meios e homens nossos, dos nossos aliados e amigos de CUBA e da URSS em primeiro lugar, bem como, de um sem fim de países progressistas em todo o mundo com quem partilhávamos a vontade de construção do Socialismo e de muitos outros que prontamente reconheceram a nossa Independência.

Os sérios conflitos armados em todo o país sufocavam a nossa jovem República e tinham como objectivo a liquidação do MPLA. Estávamos gratos aos valorosos capitães de Abril que a 25 de Abril de 1974, através de um golpe de estado, enterraram o regime de Marcelo Caetano. Esses valorosos capitães negociaram connosco a Independência de uma forma pacífica e irreversível. Alguns deles, que estiveram mesmo entre nós, foram também por isso perseguidos em Portugal. Tal como em Portugal acontecia, também em Angola uma onda contrarrevolucionária encontrou os seus mentores que, durante todo o ano de 1976, se agigantaram para travar a revolução democrática e popular em curso e destruir o MPLA revolucionário.

Causas 

Surgiram então, dentro do MPLA, os que, imputando o anátema de fraccionista a toda a organização dos grupos de acção de base do MPLA existentes, almejavam a sua destruição. Esse MPLA de base que tinha sido o autor da resistência popular nas cidades no período pós 25 de Abril, que antecedeu a nossa Independência, e no qual se encontravam organizados ex-presos políticos, membros das células da clandestinidade urbana, guerrilheiros da 1ª Região e estudantes dos liceus e universidades.

Esses simpatizantes e militantes, prepararam a chegada dos dirigentes vindos do exterior que, encontraram uma realidade completamente diferente da que conheceram, quando partiram nos anos cinquenta e sessenta para o exilio, e tiveram grande dificuldade de adaptação. A complexidade da situação que se vivia no país foi também um caldo favorável para que, o MPLA, ficasse à mercê de oportunistas que, de pronto, fizeram um assalto às suas estruturas organizativas, descaracterizando-as, promovendo e dirigindo o abandono da via revolucionária e utilizando o fantasma do fraccionismo para as destruir.

Um ano de calúnias e intrigas, propagadas também pelo jornal de Angola, rádio e televisão. Seguiu-se uma repressão generalizada a todas as forças existentes de esquerda revolucionária. Apesar da tese dos vencedores de que, a 27 de Maio de 1977, teria havido um “golpe de estado” ou uma “intentona golpista”, dado pelos ditos “fraccionistas”, a maioria dos trabalhos académicos, conhecidos até agora, não corroboraram essa tese em definitivo. Pelo contrário, surgem cada vez mais informações mostrando que, o que houve, foram manifestações de populares, simpatizantes e militantes desarmados, do MPLA e povo em geral, em frente à rádio e televisão, bem como nos bairros periféricos, e ainda, uma mera tomada de uma cadeia para libertar presos políticos, injustamente encarcerados, com apoio de  meia dúzia de militares amotinados.

A maioria dos militares não saíram dos quarteis embora na sua maioria estivessem descontentes. O povo insurgiu-se e manifestou-se contra o afastamento dos dirigentes Nito Alves e José Vandunem. Foi depois, por isso, reprimido violentamente. É também reconhecido hoje que, esse anátema do golpe de estado já fora “trabalhado” por forças reaccionárias e anti-marxistas internas e externas, desde Fevereiro de 1976, contra Nito Alves e José Vandunem, o que, se tornou mais visível na III Plenária do Comité Central em Outubro de 1976. Ali, depois de meses de espera para ser ouvido pela nomeada comissão de inquérito, sem sucesso, Nito Alves defendeu-se entregando um documento intitulado as «13 teses em minha defesa», nunca discutido e até  proibido, sendo mesmo a sua simples leitura ou posse  causa de morte.

A sentença fora ditada. Esse anátema “fraccionista e golpista” foi o “leitmotiv” da repressão iniciada em 1976 e aprofundada até 1980 por aqueles a que, alguns chamam hoje de “pragmáticos” e “tradicionalistas” e que, na altura, antes mesmo dos acontecimentos do dia 27 de Maio, já se tinham instalado de armas e bagagens no Ministério da Defesa a capitanear a repressão que se seguiu, primeiro em Luanda e depois em todo o país, preparada e lançada que fora a “casca da banana”. Permanece ainda vivo o mito de que, o Presidente Agostinho Neto mudou de posição, nos seus vários discursos no dia 27 de Maio, e que, só condenou os apelidados de “fraccionistas” quando soube da morte dos comandantes (altos dirigentes encontrados mortos no bairro do Sambizanga numa ambulância carbonizada) ditando a sentença de morte na sua cadeira de balanço.

Mas quem matou os comandantes no Sambizanga? Quem os pôs na carrinha e pegou fogo na madrugada de 28 de Maio? Porque não ordenou o Presidente uma investigação rigorosa sobre essas mortes tão dramáticas, cruéis e injustificadas antes de ditar a sentença? Verdades inconvenientes? Enquanto muitos dos “inculpados” desapareceram para sempre da face da terra, depois de “obrigados a assumir culpas alheias”, desapareceram sabe-se lá para onde, talvez esquecidos em valas comuns até hoje, outros, sobreviveram e amargaram nas cadeias até 1980 por “crimes políticos” que nunca cometeram. O MPLA original passou tristemente e ingloriamente à história, sucedendo-lhe um “outro MPLA”, em Dezembro de 1977, com uma retórica supostamente “marxista-leninista”, sob o “olhar silencioso de Lenine”, o MPLA-Partido do Trabalho.

Do MPLA actual não vou falar, por ser meu propósito abordar apenas o MPLA que existia até ao 27 de Maio e do qual me senti sempre pertença, e com muito orgulho.

Consequências 

Falemos então agora da já famosa CIVICOP da qual se esperavam actos de reparação das consequências dos crimes praticados pelo MPLA no processo de 27 de Maio de 1977.

Das palavras aos actos? 

Nasceu uma comissão, criada por decreto presidencial e que foi chamada de Comissão para Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP). A nota de imprensa da Casa Civil do Sr. Presidente da República, relativa ao Despacho Presidencial de 26 de Abril de 2019, era taxativa, esta comissão seria dirigida pelo Ministro da Justiça e Direitos Humanos, integrando apenas sete organismos do Estado, apoiada por um grupo técnico científico e deveria ainda consultar mais quatro ministérios, os partidos políticos com assento parlamentar, as organizações religiosas reconhecidas, as organizações idóneas da sociedade civil bem como entidades cujo objecto social facilite os seus fins. 

Com que fins? 

Apresentar até 31 de Julho de 2021 um plano geral de homenagem às vítimas dos “conflitos políticos”, ocorridos entre 1975-2002, tais como, referia a nota de imprensa, a “intentona golpista do 27 de Maio” ou eventuais crimes cometidos por movimentos ou partidos políticos no quadro do conflito armado, segundo afirmou a mesma nota de imprensa. 

Plano da CIVICOP

Apresentado a 3 de Maio de 2019, tratou-se de um documento de nove páginas, confuso nos seus objectivos gerais e específicos, falando em «mecanismos de diálogo para perdoar, curar e honrar a memória das vítimas dos “conflitos políticos”» e «dar tratamento às reclamações das famílias e pessoas que sofreram os males resultantes de episódios de violência física e espiritual». 

  • No que toca à época a abranger, dizia tratar-se do período da guerra civil entre 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002, período durante o qual assumia que o Estado Angolano tinha responsabilidades políticas. 

  • Quanto à metodologia de abordagem, o documento, dizia entre outras coisas que esta, deveria «restringir-se aos actos mais relevantes de atentados contra pessoas, distinguindo-se actos de guerra; perseguições políticas e atentados a direitos e liberdades fundamentais».  

  • Quanto aos princípios da abordagem, a reconciliação e o perdão foram o mote da campanha montada e chamada “abraçar e perdoar”. Embora no texto figurem breves referências aos princípios internacionais e à historicidade, estes apenas ficaram no papel desconectados da Verdade e da Justiça, pois ficou logo implícito no documento do Plano de Trabalho da CIVICOP que, todos os crimes, mesmo os que não prescrevem à luz do Direito Internacional, para ela, CIVICOP, estavam amnistiados e não havia nenhuma componente jurídico-legal e ou judicial a tratar.

Principais conclusões que se podem tirar:

  1. Rebuscou-se para a CIVICOP a tese do “golpe de estado”, ou “intentona golpista” no âmbito de “conflitos políticos”, já que, o que aconteceu em Maio de 1977 não se pode enquadrar no conflito armado com a UNITA e a FNLA. Ou seja, antes mesmo de se apurar a verdade histórica dos ditos acontecimentos explicita-se e consagra-se a versão apenas dos vencedores, sem qualquer investigação ou libertação de arquivos que conduza a apurar a verdade. Isto é um procedimento internacionalmente aceite?
  1. Nada foi definido para o envolvimento dos familiares das vítimas nem das organizações representativas dos desaparecidos e dos sobreviventes nos trabalhos da CIVICOP, pois apenas interessava consultar os que “facilitassem”. Nada de comissões de verdade, como disse várias vezes à Plataforma 27 de Maio o seu coordenador Dr. Francisco Queiróz, apenas homenagens e perdão e reconciliação (a qualquer preço). Mas é assim que se promove a Reconciliação?

Contactos entre a CIVICOP e a PLATAFORMA 27 DE MAIO

Na expectativa de que, depois de 43 anos de luta pela Verdade, houvesse espaço para diálogo com a recentemente criada CIVICOP, um grande número de familiares das vítimas e ex-presos políticos sobreviventes, ainda vivos, enquadrados nas três associações a saber, Associação M27, Associação 27 de Maio e o Grupo de Sobreviventes 27 de Maio, decidiram constituir, entre as três organizações, a  Plataforma 27 de Maio, a 30 de Setembro de 2019, juntando assim os contributos de todos os seus membros para o apuramento da Verdade, procurando encetar um diálogo com a CIVICOP apesar de todas as reservas logo percebidas. Havendo ainda uma quarta organização, que se apresentava supostamente afecta ao processo do 27 de maio de 1977, de nome” Fundação 27 de maio”, cedo se percebeu que a mesma, embora congregando muito poucas pessoas, reconhecidamente afectas a este processo, era dirigida por pessoas que nada tinham a ver com o 27 de Maio de 1977 e tinha uma “agenda escondida” em completa sintonia com a CIVICOP, que a elegeu, inopinadamente, como a “única representante dos familiares e sobreviventes”, sem de facto o ser, mas sim e apenas por se tratar de um facilitador para o que aí viria. Tendo por fim a CIVICOP, depois da sua 10ª sessão, aceite fazer com a Plataforma 27 de Maio duas reuniões que apelidou “de auscultação”, onde foram reiteradamente apresentadas propostas de trabalho que nunca foram respondidas, a Plataforma 27 de Maio deu como encerrado o diálogo com a CIVICOP a 7 de Março de 2021.

A Plataforma 27 de Maio manteve-se sempre firme nas suas exigências, reclamando uma CIVICOP com cariz de comissão de Verdade o que implicaria um trabalho feito por especialistas forenses de reconhecida craveira internacional. Tal não aconteceu. Veio depois o célebre pedido de perdão feito pelo Sr. Presidente da República de Angola, em nome do Estado, relativamente aos crimes cometidos no passado, o que trouxe uma nova esperança de que, a CIVICOP, acertaria o passo mudando de rumo.

Seguiram-se buscas fictícias de valas comuns, destruição de provas em possíveis locais, e quando supostamente foram encontradas ossadas, houve exposição televisiva abusiva das mesmas, logo seguida de entregas de supostas ossadas em cerimónias de caixão fechado. Foi temporariamente aceite o concurso de um grupo de especialistas forenses Portugueses. Estes estiveram em Angola a fazer perícias e concluíram que as ossadas que lhes tinham sido entregues, como sendo de altos dirigentes desaparecidos na época, não correspondiam ao afirmado.

Ficou então claro que, sem previamente se fazerem os testes de ADN em ossos, o que foi feito, naquele caso, em Lisboa, pelo Instituto de Medicina Legal, não era possível tirar quaisquer conclusões confiáveis. Angola não tem como fazer os testes de ADN em ossos, já que, não tem essa tecnologia e esse know-how, como se veio a comprovar. Uma trapalhada desprestigiante para o país face aos organismos internacionais. A CIVICOP nunca se pronunciou sobre essas conclusões. Surge, entretanto, o “facilitador da Fundação” com declarações grosseiras e ofensivas ao internacionalmente reconhecido e prestigiado Professor Dr. Duarte Nuno Vieira, que chefiou esse grupo de trabalho resultante de um acordo entre o Sr. Presidente de Angola e o Sr. Primeiro-Ministro de Portugal, mas essas suas declarações nunca foram contrariadas pela CIVICOP e esta manteve o concurso desse seu facilitador.

Para nós continuam desaparecidos

É muito difícil, aos sobreviventes da repressão resultante do 27 de Maio de 1977, chegar a Maio de 2024 sem saberem onde estão os restos mortais dos seus camaradas desaparecidos entre 1977 e 1980. O tempo passou e para muitos esgotou-se! Como não será este dia muito mais difícil para os órfãos e restantes familiares das vítimas?!, e ainda há quem, sem pudor, diga que, nos continuamos a fazer de vítimas?

Compromissos assumidos pelo Estado Angolano

Quando em 2018 o Ministério da Justiça e Direitos Humanos (MJDH), da República de Angola reconheceu, na página 3 de um documento seu, intitulado  «Estratégia do Executivo de médio prazo para os Direitos Humanos (2018-2022)» que, o processo 27 de Maio de 1977 foi um dos acontecimentos mais relevantes da época, seguindo-se um cortejo de atentados aos direitos humanos e explicitando, no mesmo documento, a vontade em criar as bases para a promoção e defesa sistemática dos direitos humanos, não podia ser mais explicito.

O MJDH estava a enquadrar as consequências desse processo na esfera da reposição dos direitos humanos à luz das convenções internacionais assinadas pela República de Angola. Sendo assim, não devia, e não podia, quando confrontado pelos Relatores Especiais do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, o que aconteceu a 15 de Janeiro passado, após uma queixa fundamentada apresentada àquele organismo, furtar-se a dar respostas sérias e cabais, tendo pelo contrário, optado por dar respostas pífias.

É confrangedor ver que o MJDH fez de conta que não percebeu o teor da carta recebida e que não vê qualquer gravidade em fornecer respostas enganosas aos relatores especiais da ONU. Será que não foi entendido o teor da carta e particularmente, as recomendações constantes do anexo da mesma? Este comportamento não encaixa com a estratégia definida por Angola para os direitos humanos no médio prazo. Os relatores especiais da ONU não são “meninos de coro”.

Não se pode dizer que se está a trabalhar com base na justiça transicional e a cumprir os princípios das comissões de Verdade, quando a CIVICOP não passa de uma comissão de homenagem, de cariz governamental, sem um verdadeiro envolvimento dos familiares das vítimas em todo o processo e não segue minimamente as regras internacionais aplicáveis a desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais, insistindo na retórica estafada dos “conflitos políticos”. 

Neste Maio de 2024 continuaremos de luto pelos nossos camaradas desaparecidos há 47 anos, nunca encontrados, barbaramente assassinados, abandonados no frio de valas comuns que ainda não foram abertas, ou que, jazem mesmo no fundo do oceano, como assegura, ter recebido essa informação, um Historiador Angolano.

José Fuso/ 21 de Maio de 2024


27 de Maio - 47 anos

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