O 27 de Maio, a ambulância do Pitoco e a auto–censura

O 27 de Maio, a ambulância do Pitoco e a auto–censura

Não há como não falar, pelo menos uma vez por ano, no 27 de Maio. De 1977. Vinte e sete anos depois.

Cá estamos nós novamente a marcar presença, para recordar, para fazer lembrar, para trazer de volta uma data que nunca deveria ter existido, mas existiu.

Desgraçadamente. Lamentavelmente. Sangrentamente. Desumanamente.
É uma efeméride que ainda não entrou para o calendário oficial dos feriados, onde deveria figurar, como uma data de reflexão em torno das opções que a política em qualquer circunstância deveria saber evitar.

Os acontecimentos de Maio de 77 permitem-nos fazer anualmente esta reflexão, com o surgimento de novos elementos que resultam do aprofundamento da investigação histórica à volta do que realmente se passou naquela data. Elementos relacionados particularmente com os antecedentes que determinaram o desfecho que se conhece, pois em relação ao que se passou depois, não há qualquer dúvida.

Tratou-se efectivamente de um massacre de proporções dantescas, gigantescas, que teve na sua origem uma política de eliminação sistemática de todos os adversários, que não pode deixar ninguém indiferente.

Entre a tentativa de um golpe de estado, a organização de um contra-golpe de sobrevivência, o desencadeamento de um movimento insurreccional ou seja lá o que se tenha passado há 27 nos e a brutal repressão que se seguiu aos factos que entraram para a nossa história naquela fatídica manhã de quinta.feira, há certamente a uma lição de transcendente importância a retirar.

Esta lição quanto a nós é a dos direitos humanos que têm de ser respeitados pelo Estado em qualquer circunstância como valor absoluto. Com partido único ou com multipartidarismo. Com democracia ou com ditadura, embora saibamos que uma democracia a funcionar plenamente é a melhor barreira para prevenir fenómenos do género, típicos de sistemas políticos totalitários.

Se assim tivesse acontecido há 27 anos, se o Estado tivesse reagido como uma respeitável pessoa de bem, o 27 de Maio seria hoje uma data quase esquecida na poeira do tempo e certamente que o país estaria a viver uma outra realidade, sobretudo no que toca ao seu processo de democratização.
Acreditamos que Angola de hoje seria bem diferente se não tivesse havido a traumatizante repressão que se abateu sobre o país há 27 anos, qual imenso manto de terror e breu, cujas consequências ainda se fazem sentir até ao momento.

São sequelas que ainda impedem, por exemplo, de formular algumas perguntas que bem gostaria de fazer e de dirigir a uns quantos protagonistas dos acontecimentos da época, sem recear outros desenvolvimentos.
Mas receio, no meu íntimo profundamente traumatizado pela imagem da ambulância do Pitoco, que entrava à noite na cadeia de São Paulo para ir buscar mais “doentes”, que ninguém sabia muito bem para onde eram levados.

Todos imaginávamos que o destino deles, dos novos passageiros da ambulância, só poderia ser para os “hospitais” da tortura e da morte, de onde como se sabe nunca mais regressaram, num país que é possivelmente, um dos maiores coleccionadores a nível internacional de pessoas desaparecidas.

Juridicamente a figura do desaparecido tem a ver com alguém cuja morte não pode ser confirmada por nenhum atestado de óbito legalmente passado por quem de direito. Nestas casos, a família caso queira regularizar a situação do seu desaparecido, ao fim de dez anos, tem de se socorrer de um determinado instituto legal, de cujo nome não me lembro muito bem, para conseguir transformar o desaparecido em morto.

Duas ou mais testemunhas são necessárias para declarar junto das autoridades que o fulano de tal nunca mais apareceu lá no bairro, nunca mais dormiu com a esposa, que mesmo assim, não consegue ser viúva. Depois aguarda-se, sentado, pelo competente despacho do ministro da Justiça.

Será que em Angola já alguém recorreu a este instituto?
Uma das consequências do 27 chama-se claramente AUTO-CENSURA, grande inimiga da liberdade de expressão, a principal aliada dos adversários da democracia e da transparência, o maior obstáculo à consolidação do novo regime político que estamos a com ele em fase de transição, já lá vão cerca de 15 anos.

É certamente, a herança mais sólida, duradoura e profunda que o 27 de Maio e os seus responsáveis directos e indirectos pelo gigantesco massacre legaram a este país, sabendo antecipadamente que era assim que as coisas iam correr. Foi tudo bem calculado. Friamente. Era preciso implantar um medo estratégico através do terror, para prevenir a ocorrência de outras situações do género.

Se bem o pensaram, melhor o fizeram, tendo, ao que se sabe, ultrapassado mesmo algumas expectativas mais entusiastas, o que levou na altura Agostinho Neto a mandar parar o “baile” que ele mesmo tinha ordenado com a sua célebre “poética” luz verde, quando sentenciou que o processo de punição ia ser rápido e eficaz e que não haveria perdão para ninguém.

Já era muito tarde, pois o pior já estava feito. Só restava fazer o balanço das vítimas o que, 27 anos depois, continua por ser feito.

Agostinho Neto ficou assim ligado à história de Angola como o responsável pelo nascimento de um país jovem e como o carrasco moral de uma parcela da sua juventude. Uma responsabilidade moral extensiva a muito boa gente, onde se incluem os tais “intelectuais revolucionários” da época, um dos quais, a pastar actualmente carneiros na mukueba, não teve qualquer problema em assumir que em Angola os intelectuais nunca tiveram qualquer problema em sujar as suas mãos com …sangue.

Foi com o 27 de Maio de 1977 que a auto-censura fez a sua entrada em força nas nossas vidas como cidadãos e muito particularmente como jornalistas. Aliás, na altura nem se podia falar mesmo da existência de jornalismo. Seria uma afronta ao conceito.

Havia alguma informação e… muita propaganda.
Curiosamente, não havia censura institucionalizada, com a existência do famoso lápis azul a cortar tudo o que não agradasse ao patrão, conforme acontecia no tempo da outra senhora, da PIDE-DGS, do colonialismo português.

Não havia esta figura apenas porque não era necessária. A auto-censura transformou-nos a todos nós, em polícias do nosso próprio pensamento. Era um sistema muito mais eficaz e com uma grande economia de recursos.
A partir daquela data passámos a dizer em público não o que realmente pensávamos, mas o que era conveniente e pacífico, evitando sobretudo produzir afirmações que desagradassem aos Chefes.

Todos eles, do topo à base. Auto-censura e a cultura do chefe (quem manda, manda, quem não manda obedece) passaram a andar de mãos bem dadas.

A auto-censura instalou-se no tecido social e político, criou raízes profundas, produziu os esperados resultados que estão aí bem visíveis em muitos comportamentos e atitudes.

O 27 de Maio explica efectivamente porquê que somos assim, tão pequenos por vezes, porque continuamos a ter medo da ambulância do Pitoco.

Crónica assinada por Wilson Dada em Jornal ANGOLENSE
29 de Maio a 04 de Junho de 2004

27 de Maio - 27 anos

Wilson Dadá

Jornal Angolense

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