Quadragésimo sétimo ano, um balanço
Quadragésimo sétimo ano, um balanço.
47 anos depois do trágico “27 de Maio de 1977”, nós, que soçobrámos nas prisões, que amargámos nos campos de trabalho forçado e que testemunhámos a ida sem regresso de quantos dos nossos companheiros das cadeias, cujas celas individuais só tinham o nome e as colectivas transbordavam, somos sobreviventes porque nos livrámos das valas que, por terem sido o destino de muitos, se diziam comuns.
Éramos jovens, homens e mulheres, e fomos poupados ao desaparecimento forçado, pela ventura ou qualquer outro tipo de sorte. Muitos de nós ainda por cá estamos, mais velhos, é claro, mas sem tibiezas, determinados no combate que travamos há quase cinquenta anos, pela preservação da memória, pela procura da verdade histórica e pelo advento da justiça.
Temos conseguido alguns resultados, como é comum acontecer quando o esforço é pertinaz, se bem que, como as partes em confronto, são distintas, há desequilíbrio, e por vezes, no lado mais fraco acontece a decepção e o desânimo, a par do fantasma do medo que nos persegue, tamanha a desproporção abjecta e cruel da repressão de índole vingativa, que deixou uma marca profunda, um pesado fardo que carregamos.
Ainda assim, não vergámos a cerviz, continuamos de pé e não desistimos. Do lado oposto, no círculo dos mandantes da matança e seus caninos serventes, uns arrogantes que ainda hoje nos afrontam; “deviam ter sido todos mortos!”, proclamava um deles numa reunião em que representava os outros, subsiste a impunidade, que julgam ser eterna, só porque se acham vencedores.
Abertura Democrática
Em 1991 foi anunciada por José Eduardo Dos Santos a “abertura democrática”, uma “imposição internacional”, que, a par do fim da guerra, viriam a ser a marca como o recordariam mais tarde: “arquiteto da paz”.
Aproveitámos a dita nesga e muito naturalmente, endereçámos-lhe uma primeira carta a pedir que nos patenteasse a principal prova da existência ou não das violações aos estatutos do MPLA, o fraccionismo praticado por dois membros do Comitê Central, o por demais falado; “relatório da comissão de inquérito ao fraccionismo”, cuja coordenação lhe foi confiada, pelo Bureau Político do MPLA, do qual fazia parte.
Também lhe pedimos que franqueasse as portas dos arquivos referentes ao “27 de Maio de 1977”, convictos, ao fazermos estes pedidos, estarmos perante um homem tranquilo, no que diz respeito à sua implicação na trama do “27”, havendo até quem afirme ter sido Agostinho Neto a safá-lo das garras de Henrique Santos “Onambwe”, o homem da DISA, quando este, impune e altaneiro, lhe deu ordem de prisão.
Das cartas enviadas, pois insistimos neste procedimento, nunca obtivemos resposta. Depois da sua morte, surgiu nas bancas um livro onde um dos autores se dizia senhor do dom para dialogar com o defunto. Partilho da opinião de Umberto Eco; “Na verdade, a força dos fantasmas está precisamente na sua irrealidade”, mesmo assim, ficámos atentos à transcrição da “conversa”, não fosse tratar-se de uma habilidade, para dar a conhecer um segredo contado ou até rapinado por alguém que acedera ao velho e enfermo presidente, arrependido e que próximo do fim, dizem-nos; “Não encontro repouso. Não encontro paz, procuro conforto, mas não o encontro”, se lamuriava, e neste penar decide entregar o seu parecer para o apuramento da verdade.
Ficámos “dececionados” quando verificámos que o estadista finado nada disse, não deixou escapar uma só palavra sobre as conclusões da “Comissão de Inquérito ao Fraccionismo”, que liderou. Fazê-lo garantia-lhe um outro lugar na história e nós, sobreviventes e familiares folgaríamos pois, diz o provérbio; “mais vale tarde que nunca”. Uma pergunta se impõe; qual terá sido a intenção de exaltar os supostos lamentos de um presidente, assaz arrependido, tal qual pode ser lido na peça?
As tarefas de uma Comissão de Verdade
Este recontro que vamos aguentando, é desigual, abusa da nossa paciência, mas também é dela que nos socorremos, prosseguindo passo a passo, umas vezes com recompensa, outras nem tanto; se não foi desta, quiçá venha a ser da próxima.
Substituído o interlocutor, que seguramente nos ouviu, mas sempre se manteve calado, prosseguimos com o protagonista que o rendeu e voltámos aos mesmos pedidos, confiantes, e uma vez satisfeitos, estariam criadas as condições para, assim houvesse vontade, ser dado o passo seguinte; a reclamada e desejada “Comissão de Verdade”.
Então, descobertas as diversas sepulturas espalhadas pela extensão do território e cumprindo os critérios e as práticas da antropologia forense, os corpos daqueles que estiveram desaparecidos durante todos estes anos, seriam exumados, identificados e reconhecidos, comparando o ADN recolhido dos ossos, – uma técnica que Angola não possui, mas podia recorrer a quem a tenha – com as amostras recolhidas dos parentes maternos das vítimas, e finalmente, com cerimónia ou não, seriam devolvidos os restos mortais às respectivas famílias, para que estas, no recato, lhes dessem um funeral condigno, estando na posse das certidões de óbito onde constavam as datas e as causas das mortes e, porque não, as identidades dos seus autores.
Dizem-nos que há desaparecidos que jamais deixarão essa condição, pois os seus corpos acabaram nas profundezas do mar. Nestes casos seria dado a conhecer pelos representantes do Estado, a identidade do responsável, seriam apreciados por quem de direito as suas alegações, isto é; “porquê o fez, para que o fez e a mando de quem”, e assim seria dado mais um passo para o conhecimento da verdade.
Reparo que me entusiasmei, um devaneio que por vezes acontece, quando a razão é forte. Mesmo assim, registe-se a exaltação momentânea e passemos ao importante que afinal não deixa de ser aquilo que acabei de dizer no meu breve arrebatamento, mas que ainda está por fazer.
É mau conselho exortar ao perdão avulso
O actual Presidente da República e do MPLA, está isento de imputação golpista, não consta que Onambwe o tenha indiciado, como se diz ter feito com o seu antecessor, porém, ao contrário deste e da declaração do Comité Central do MPLA de 2002, que se referia ao “27 de Maio de 1977”, não como uma Intentona golpista mas apenas e tão só “acontecimentos”, não se coibiu João Lourenço de opinar sobre a natureza do “27 de Maio de 1977”, declarando, na 2ª quinzena de Maio de 2003 para o Jornal “EME”, esta relíquia absurda; “Há quem prefira manter-se na situação cómoda de vítima do regime por ter sido preso e acusado de fraccionismo”.
Auxiliando-se de informação privilegiada, que só ele tem, mas que não partilha, afirma ter ocorrido, a 27 de Maio de 1977, uma tentativa golpista à qual os ofendidos responderam de forma excessiva. Sabemos bem o significado do adjectivo e é difícil compreender como é que um bom número de indivíduos, submetidos enquanto presos, ao vexame e à tortura, as ignomínias às quais João Lourenço considera “excessos”, podem viver numa situação cómoda, quando é sabido que se estão vivos é porque se salvaram das valas comuns, que por todo o país foram grandes e muitas, são portadores de stress pós-traumático, uma angústia de longa duração, cujos efeitos, ao contrário de serem cómodos, são persistentes, graves e representam um enorme transtorno na vida de quem experimentou eventos, por exemplo, de risco de vida.
O Presidente da República e do MPLA é casado com uma sobrevivente do “27 de Maio de 1977”, portanto, com alguém que não desapareceu, como tantas outras mulheres atiradas para as masmorras de São Paulo, que ouviu naturalmente, tal como nós, os gritos que escapavam dos horrores da tortura, conheceu as identidades dos torturadores, muitos deles estão por aí às claras, e assistiu às saídas noturnas das ambulâncias repletas que regressavam vazias pela manhã.
João Lourenço, tem à mão, um testemunho confiável, e se dele ouviu estórias, macabras, e as comparou com tantas outras descritas por muitos outros sobreviventes que passaram por São Paulo, e não só, decerto se inquietou, e compreendeu que ninguém gostou de ser vítima dos “excessos”, só por si uma redundância, e não cultivam esse “prazer”, as vítimas não são masoquistas, já os carrascos, executores ou mentores, comportaram-se como autênticos sádicos.
As vítimas do regime existem, são muitas e não estão há espera de nada mais que não seja assistir um dia, ao Estado Angolano mais o partido que o suporta, o MPLA, pela recusa em promover e responder perante uma Comissão de Verdade, serem responsabilizados, quanto mais não seja, pela história.
Na mesma declaração ao jornal “EME”, João Lourenço apresentou o deputado Brito Júnior, como um homem que sofreu, – também o posso atestar – acusado de fraccionismo, não foi sujeito a um interrogatório formal, não o culparam de nada e tão pouco foi levado à presença de um juiz ou a qualquer tribunal, aliás o mesmo sucedeu a todos os outros tocados pela mesma “sorte”. Brito Júnior perdoou quem o maltratou, e assim foi apontado como um modelo a seguir. Ora, pretender que lhe sigamos o exemplo, sem que para tal se faça uma reflexão profunda, no espaço de uma comissão de verdade e justiça, é trair a memória dos desaparecidos e um convite à genuflexão ante os algozes.
Infortunadamente, Brito Júnior não foi o único a perdoar, a claudicar e a render-se às benesses do MPLA.
CIVICOP, uma “Comissão de Verdade” inventada.
Ainda não vai ser neste mandato presidencial, assim prevejo, que vão ser abertos os arquivos da DISA e do MPLA, o que nos leva a pensar na existência de algum comprometimento, não me ocorre outra palavra, e a concomitante necessidade de o esconder, – “Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque nós vamos destruir as provas juntamente convosco”, preveniu-nos Primo Levi, porém, estranhamente, começam a ouvir-se referências a conteúdos supostamente trancafiados, gravações áudio de presumíveis “interrogatórios” e outros mistérios, que ou são descuidos ou provocações, enfim, vamos aguardar pelos próximos capítulos.
Este Presidente não procedeu como o seu antecessor, não optou pela mudez, falou, mas também não respondeu às nossas perguntas, optou pelo estratagema da “Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos” (CIVICOP), uma habilidade para descartar a constituição de uma “comissão de verdade”, uma ficção que teve início em Abril de 2019, quando incumbiu o seu ministro da justiça e dos direitos humanos, Francisco Queiroz, de imaginar um evento, não mais do que isso, que instituísse por decreto na sociedade angolana a reconciliação, o perdão e o abraço, ao som de um hino feito à medida e cantado à porta de um descomunal memorial de exaltação, em homenagem, vá-se lá saber o significado da intenção, às vítimas dos conflitos políticos que ensombraram Angola entre 11 de Novembro de 1975, o dia em que conseguimos a independência, e o dia 4 de Abril de 2002, que festeja o fim da guerra.
É claro que no rol das discórdias havidas, não figurar uma das que mais desaparecidos forçou, o “27 de Maio”, seria abusivamente estranho, por isso o consideraram e, atrevo-me a dizer, pelo que pude observar, ter sido este o “conflito” que deu razão à existência da “Comissão”.
Nós, os sobreviventes, os órfãos e os familiares, juntámo-nos na “Plataforma 27 de Maio”, para podermos falar a uma só voz, mas, afinal, nem fomos convidados, a CIVICOP decidiu servir-se de uma criação fantoche, obviamente uma carta escondida na manga pronta a entrar no jogo quando fosse necessário, atirando borda fora quem deveras sobreviveu e também os familiares dos desaparecidos.
Fizemos pressão, denunciámos as intenções da denominada fundação, pois era do nosso interesse participar, então, o Ministro da Justiça e Direitos Humanos, Francisco Queiroz, falou connosco, “of the record”, isto é, à margem da comissão, apresentando como contacto privilegiado um mensageiro para, como se diz na gíria, “nos dar corda”.
Cornélio Caley, assim se chama o emissário, é verdade que se reuniu connosco, e até mostrou alguma emoção no debate, mas afinal, a sua tarefa não passou de um faz de contas, pois assim, enquanto estivemos entretidos na conversa, arredaram-nos dos trabalhos efectivos da CIVICOP, pelo que se concluiu, das suas dez primeiras reuniões.
Seria enfadonha a leitura se relatasse os truques praticados, tais como os convites formais, endereçados por uma secretária, tudo com alguma jactância, para participarmos nos trabalhos online, mas para as quais não nos eram enviadas as passwords de ingresso, um método expedito de nos barrarem a palavra; era o ver, ouvir mas calar!
O processo do perdão e reconciliação nacional, assim o titularam, iniciou-se com a aprovação de legislação específica, a regular a entrega das certidões de óbito aos familiares que as pedissem, porém, note-se, nos atestados não apareciam mencionados, quer os motivos, quer tão pouco as causas das mortes, o que significava, para quem as pedia, a assunção de uma trapaça, pois assim, eram tacitamente admitidas as mortes dos respectivos parentes, ficando contudo por saber; quando, quem e porquê tal destino lhes tinha sido dado, como também a aceitação do dito documento não obrigar à concomitante entrega dos respectivos restos mortais para lhes ser feito um funeral.
No dia 25 de Maio de 2021 resolvemos sugerir ao presidente, para isso lhe dirigimos uma carta, que pedisse publicamente perdão em nome do MPLA e do Estado Angolano, quanto mais não fosse, pelos massacres ocorridos até 1979, e que tinham sido qualificados de “excessos”.
Então, o chefe da nação, observando uma coerência com mais de uma década, repetiu no discurso o que havia dito para o jornal “EME” em 2003, voltou a qualificar o “27 de Maio de 1977” de tentativa de golpe de estado, cujo desfecho resultou numa resposta exagerada, a cruel repressão já referida neste texto.
Assim, com este pedido de desculpas, não contrariou, muito pelo contrário, reiterou o parecer de um membro do Bureau Político do seu partido, o MPLA, Partido do Trabalho que, no dia anterior afiançou; “o presidente nunca pedirá perdão”, o que de facto aconteceu.
Note-se que, o pedido de desculpas que fez, fê-lo apenas em nome do Estado Angolano, e não em nome do MPLA, a organização de que também é presidente e foi a mesma que consentiu e promoveu os “excessos”. É por ainda existir, quarenta e sete anos transcorridos, quem brade sem qualquer pejo a palavra “nunca” que, quando ouvem falar em “Comissões de Verdade”, a decisão é a mesma; NUNCA.
A Trapalhada dos Restos Mortais
De repente, verificou-se uma pressa incomum, na procura de valas comuns e no desenterrar corpos. Pela televisão pública de Angola (TPA), pudemos assistir à operação macabra; uma máquina escavadora a corromper uma suposta vala comum, um processo melindroso, que obriga a um saber, coisa que não se vislumbrou na manobra, chegando ao cúmulo de ser visto, um crânio à deriva.
Dessa vala dizem ter sido retiradas várias ossadas, que, à vista desarmada apresentava indícios de proveniências distintas, isto é; os restos de terra que traziam agarrados eram diferentes, assim como o estado de mumificação deixava supor que se decompuseram em ambientes distintos, porém, a análise antropológica feita pela equipa forense angolana encontrou perfil biológico correspondente ao indivíduo “X”.
Depois a equipa forense Portuguesa, liderada pelo Professor Duarte Nuno Vieira, que se deslocou a convite à República de Angola, procedeu à identificação genética individual, e não encontrou qualquer correspondência entre os citados indivíduos e os respectivos familiares dadores.
É sabido que a República de Angola, não dispunha de meios técnicos e científicos indispensáveis à certificação de ADN em ossos, daí ser lícito perguntar; como foram conseguidas as identificações dos indivíduos, “X”, “Y”, etc, apenas com o resultado do perfil biológico? Todo este enredo pode ser visionado numa comunicação feita em Lisboa, no dia 21 de Março 2023, para uma plateia de familiares das vítimas e às associações que integram a “Plataforma 27 de Maio”.
Não fora esta trapalhice bastante, as ossadas que foram entregues para análise com reconhecidas identidades, pertenciam a pessoas que não tinham morrido em 1977, 78 ou 79 e além disso duas delas tão pouco eram adultas.
Prevejo finalmente que, por este andar, não vamos lá. As autoridades angolanas decididamente preferem resguardar os seus prevaricadores, conceder-lhes imunidade vitalícia ou porque são compadres, sócios, parentes próximos ou até afastados, para despeito das famílias que viram os seus familiares desaparecidos e dificilmente virão um dia a saber, como, por quem e porquê.
Nesta senda, também a história que vai ser contada às crianças nas escolas, ficará incompleta, isto para não dizer propositadamente viciada, e quando não se diz a verdade ao povo, e se lhes faz outras tantas malvadezas, vai este um dia e zás, zanga-se, estrebucha, manifesta-se, e assim não podemos dar como encerrado o assunto e afirmar que jamais se voltará a repetir.
27 de Maio de 2024
José Reis
José Reis