Os Rótulos, Assumidos, de Jean-Michel Mabeko-Tali
…De todos os dirigentes históricos do MPLA saídos da luta armada anticolonial, Lúcio Lara era, de facto, conhecido pela sua oposição ao modelo soviético do socialismo. As suas simpatias tendiam mais para a experiência de Tito, na Jugoslávia. Durante a luta de libertação nacional, o modelo revolucionário maoista tivera a sua preferência…, Lara teria tido sempre uma «desconfiança ideológica» relativamente ao seu aliado soviético até ao fim da URSS, …
(em Rótulos Atribuídos, Rótulos Assumidos: Memórias e Identidades Políticas em Angola- Da Luta Armada Anticolonial ao 27 de Maio de 1977 (1960-1977), páginas 108-109)
Parte I – Em defesa do Pai Adoptivo
A editora Guerra & Paz deu à estampa o último livro do historiador Jean Michel Mabeko-Tali, “Rótulos Atribuídos, Rótulos Assumidos”, com pré-lançamento a 26 de Setembro de 2023 e lançamento na UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) no passado dia 4 de Outubro de 2023. O Presidente da UCCLA, Dr. Vítor Ramalho abriu a sessão, revelando ter acedido ao livro na véspera e que a sua leitura lhe tirara o sono. Tal não aconteceu ao Dr. José Bastos, o apresentador da obra, que disse pretender falar o menos possível, ou mesmo nada. Assim, mais valia estar calado, acabou por protagonizar o acto falhado deste lançamento, o que certamente terá desagradado o autor, o editor e a própria UCCLA.
Por outro lado, a citada apresentação para lá de desprestigiar a obra, conseguiu provocar alguns risos nervosos, tal a estolidez do apresentador, despertando ainda em muitos dos presentes um sentimento de revolta pelo desrespeito para com os familiares das vítimas e sobreviventes do 27 de Maio de 1977, presentes na sala. Em total desacordo com as palavras do apresentador, e por respeito ao autor, não perturbaram o acto e o que se esperava acontecer no final, interpelar o autor sobre alguns aspectos da obra, num saudável contraditório, não aconteceu, sabe-se lá porquê (…)
Mas, indo directamente ao conteúdo da obra:
O professor Jean Michel organizou o livro em três partes. As duas primeiras não me parecem ser muito congruentes com o exposto na terceira parte, o que, o autor não deixou de explicar, quando se referiu na página 26 à metodologia de trabalho empregue e à necessidade que sentiu ao juntar ao conjunto dos textos das primeira e segunda partes (textos antigos), um breve estudo mais recente que se lhe impôs “pela necessidade de proceder a uma análise de um documento maior na história do MPLA, cujo conteúdo traduz estes debates internos neste partido político, num momento crucial da sua existência….Trata-se das 13 Teses em Minha Defesa. O seu autor: Alves Bernardo Baptista, mais conhecido pelo seu nome de guerra, Nito Alves…”.
Nos Capítulo IV (pág.102-111) e Capítulo V (pág.112-120), da segunda parte, antes mesmo de iniciar a análise das 13 Teses propriamente ditas, que estaria remetida para o tal breve estudo da terceira parte, o autor, antecipa o seu veredicto sobre os chamados “acontecimentos do 27 de Maio de 1977”. Pasme-se esta opção metodológica, ou talvez, a ideia tenha sido a de fazer uma declaração prévia de intenções, assumindo pessoalmente alguns rótulos e atribuindo outros, o que, não me parece habitual a um historiador, mas que, é bastante compreensível a um filho que pretenda defender o seu pai a qualquer custo!
Porém, as conclusões antecipadas que ali expressa o professor Jean Michel, não são nada de novo, antes pelo contrário, já antes ele as formulara de uma forma menos argumentativa em duas ocasiões, ou seja, nos seus 2 volumes do “MPLA perante si próprio”, edição de 2001, a que chamou também “Dissidências e Poder de Estado” e que, mais tarde, reeditou em 2018, mantendo rigorosamente o índice e a que chamou, “Guerrilhas e Lutas Sociais”. (Atente-se também que, nas 342 notas desta nova obra, 77 delas remetem para trabalhos seus anteriores, ou seja, 22,5% das notas referem-se ao que já anteriormente dissera ou documentara, isto sem contar com o que reafirma agora sem remeter para qualquer nota, mas que, já constava anteriormente também desses seus trabalhos).
Chegados aqui, direi que, esperando eu com alguma expectativa há mais de um ano a tão anunciada análise do professor Jean Michel das “13 Teses em minha defesa de Nito Alves”, e principalmente, depois de ter lido, faz tempo, um posfácio proscrito de sua autoria, surpreendeu-me que, decorrido tanto tempo desde esse anúncio, venha agora o professor a centrar a sua “análise” ou “descasque das teses”, como afirmou, na atribuição de rótulos ao autor das 13 Teses. Desse modo, não fez jus à importância que atribuiu ao documento quando o considerou um “documento maior da história do MPLA”.
O professor, não tratou o documento detalhadamente, nos múltiplos aspectos organizativos e factuais da vida interna do MPLA, a que Nito Alves ali se refere em pormenor. Atrevo-me a dizer que, o autor seguiu por um caminho um pouco “relaxado”, seleccinando cirurgicamente partes ou alguns temas das “13 Teses em minha defesa de Nito Alves”, que lhe permitissem adjetivar e atribuir rótulos ao autor, minimizando o contexto em que as teses foram escritas, a perseguição a que Nito Alves foi sujeito, não abordando sequer a estrutura de defesa apresentada no documento. Prefere o autor, perder-se em algumas das citações dos clássicos do Marxismo-Leninismo que, Nito Alves, utilizou em cada tese, ou melhor, em cada questão organizativa ali colocada, apenas como fundamentação ideológica da sua defesa perante o Comité Central do MPLA que, o acusava de fraccionismo, injustamente e sem provas, a seu ver.
Qual é então o veredicto antecipado do Professor Jean Michel mesmo antes do dito “descasque das teses”?
(o texto seguinte é meu, mas as ideias estão todas expressas pelo autor, no livro…):
As juventudes (tese do conflito de gerações) com uma identidade política radical, “marxista-leninista“, em lutas hegemónicas e elitistas, quiseram controlar o aparelho do partido-Estado MPLA, e assim, controlar a direcção do processo revolucionário…opondo-se aos que rotularam sucessivamente, ou mesmo simultaneamente, de sociais-democratas, maoistas, antissoviéticos, etc…, que grassavam no seio da direcção. Afirma o professor que, os pragmáticos (o tal grupo de reflexão de Lúcio Lara, diz ele), altos dirigentes, irritados, teriam dado respostas evasivas a esses jovens quanto às suas futuras intenções na Angola pós-colonial.
Fica implícito no livro que, para o autor, os militantes do MPLA que não tenham vindo da Argélia ou das 2ª e 3ª regiões, ou seja, os outros (a maioria), eram jovens radicais organizados em comités que usavam uma forma não violenta de tomada do poder, a infiltração (ou seja eram os entristas, como lhes chamou em várias ocasiões e que se infiltraram no MPLA). As estruturas do MPLA do interior (incluídos os comités criados pelos militantes do MPLA do interior, saídos das cadeias ou não) e os da 1ª região do MPLA, são entendidos pelo autor, apenas como comités entristas, ou grupos de reflexão, quais corpos estranhos ao MPLA dos fundadores, e todos eles, por ironia do destino, se “pegam” com Lúcio Lara (referido como Secretário do B.P., e nunca Secretário Administrativo do B.P.).
Confirma o autor que Lúcio Lara, era conhecido pela sua oposição ao modelo soviético de socialismo, e assegura ele foi adepto, durante a luta de libertação nacional, do modelo maoista (pois esse dialogava melhor com a luta que era travada) por oposição ao modelo revolucionário bolchevique de 1917. Não diz, contudo, que Lúcio Lara nunca tal assumiu publicamente. Também coloca Lúcio Lara “acompanhado” pelo Presidente Agostinho Neto, na desconfiança ideológica relativamente ao seu principal aliado nos momentos decisivos da luta pela Independência Nacional, a URSS, sem clarificar se, ao menos, nessa ocasião, na independência, ele (seu pai) teria mudado de opinião.
Também não diz se, quando a URSS recusou armamento à FNLA (por pressão do Dr. Álvaro Cunhal, como afirma), Lúcio Lara, manteve a sua “fidelidade” à sua “confiante” China, que pelo contrário, forneceu armamento e treinou a UNITA e a FNLA para combater o MPLA. Nessa narrativa surge então Nito Alves (como que caído do céu, qual inorgânico) que, parte para o confronto ideológico com Lúcio Lara, o que, terá marcado a passagem a uma aceleração do confronto directo e violento no regime que, segundo o autor, se “instalara” em 11 de novembro de 1975.
E por fim, a cereja no topo do bolo da defesa do seu pai (leia-se Lúcio Lara). Em decalque quase integral das conclusões da informação do BP, escrita por Lúcio Lara e seus homens de mão nos DOP, DIP, Escola do Partido e Jornal de Angola em1977(só faltou a palavra golpe).
A tomada do poder pela forma directa violenta: a passagem à acção insurrecional. Essa, atribuiu-a a um suposto “grupo de reflexão“, antiga ala radical dos comités Henda, cujas figuras maiores seriam, Sita Valles e José Van-Dunem, que representavam o pilar mais sólido de Nito Alves na sua ascensão e depois, no seu caminho para a tomada do poder político. Nito Alves, diz o professor, terá sido apenas um porta-voz e figura emblemática, ou seja, um “pau mandado” de Sita Valles e José Vandunem, ou ainda, a figura política que estes apoiavam e a quem forneciam instrumentos teóricos e de construção de um discurso político marxista coerente, sonhando estes a seu ver, com uma revolução do proletariado do tipo soviético.
E afirma também o professor que, “Nito Alves desempenhou um papel capital na repressão da extrema-esquerda concorrente em nome da legalidade revolucionária…”, ou seja, segundo o professor, Nito Alves, também um radical da extrema-esquerda, reprimiu os seus concorrentes através da DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola) que não era por si chefiada, mas sim por Ludy, Onambwe e Nzagi. A DISA nunca dependeu do Ministro da Administração Interna (do território). O Ministro da Administração Interna, superintendia apenas os Comissários Provinciais, (Governadores) e a Organização do Poder Popular e nunca as polícias e a segurança do Estado, como sistematicamente, e em falsidade, repetem os seus detractores.
Por outro lado, Nito Alves ocupou esse cargo governativo apenas até outubro de 1976. Como terá então Nito Alves reprimido depois de 1976 os seus “concorrentes”, como diz o autor? Ora, a chamada extrema-esquerda, dos C.A.C. e da O.C.A. foi presa maioritariamente depois dessa data, e Nito Alves, já estava suspenso do Comité Central e do B.P., e sujeito a uma campanha de difamação nos órgãos de informação desde o início de 1976, particularmente desencadeada pelo jornal de Angola, dirigido por Costa Andrade (Ndunduma). Nito Alves fizera de facto anteriormente um combate ideológico à RA (Revolta Activa), em 1974, no Congresso de Lusaka e posteriormente aos CAC (Comités Amilcar Cabral) e à OCA (Organização Comunista de Angola), quando se afastaram do MPLA, em 1975, mas um combate ideológico e de princípios organizativos e mesmo que tenha sugerido alguma vez para estes a prisão, não foi ele que emitiu os mandados, se é que os houve. Porquê querer insistir que Nito Alves é que é o responsável por essas prisões?
E quanto aos rótulos como figura aglutinadora?
Na capa do livro figuram 13 rótulos, mas, numa contagem rápida, o professor atribuiu a Nito Alves, 15 rótulos pelo menos… Segundo o autor, a sua visão (de Nito Alves) era, radical, mecanicista, especulativa, de religiosidade ideológica, sendo ainda um homem de convicções messiânicas, elitistas utópicas, pró-soviéticas de fidelidade à URSS e desenvolvia análises dogmáticas, quadradas, infantilistas de esquerda, de verborreia marxista, reducionistas e livrescas. Isto só para citar os que sobressaíram de uma primeira e rápida contagem que fiz.
Ora, nesta colagem de textos antigos do professor Jean Michel com o tal “novo estudo” sobre as teses, ele encontra um fio condutor. Qual varinha de condão, o fio condutor serão os tais rótulos atribuídos, ou assumidos que são os caracterizadores de todas as identidades. Estes rótulos vêm mesmo a calhar para poder defender o seu pai, acabando ele próprio por validar alguns deles com as revelações que nos faz sobre o “pensamento político” de Lúcio Lara, com a sua inclinação para o modelo Maoista e Jugoslavófilo (nunca confessado em vida, ou talvez apenas confessado em círculos fechados).
Tal opção pelos rótulos, é a meu ver criticável, pois além de proceder a uma “suposta coletivizacão” de identidades (ou posições) políticas individuais, ou melhor dizendo, mistura posições políticas individuais e confunde-as com identidades colectivamente aceites e assumidas pelos membros de organizações políticas (através da aceitação dos programas políticos) colocando no mesmo saco posições muito diferenciadas o que, tem pouco a ver com as 13 teses, mas serve ao professor na defesa da ideia de que, o que houve, foi um conflito de gerações com diferentes identidades.
O MPLA no período de 1960-1977, era de facto, um movimento progressista com um programa democrático e revolucionário, ou seja, com uma identidade programática muito concreta que não defendia atitudes e posições reaccionários, racistas, tribalistas, fascistas, colaboracionistas (a que o autor apelida de rótulos) e estava identificado com um projecto de construção de uma República não sujeita ao neocolonialismo e almejando construir o socialismo no futuro. Esses eram de facto atributos filosóficos e programáticos contrários às práticas políticas da UNITA e da FNLA, expressas quer na sua actividade anti-colonial, bem como no inferno das perseguições que promoveram ao MPLA, em Léopoldville e principalmente nas 1ª e 3ª regiões da guerrilha. Certamente que também havia quem pensasse como a UNITA e a FNLA no interior do MPLA, mas esses, estavam “escondidos”, “camuflados”, eram situacionistas para usar mais um rótulo.
Numa segunda parte deste texto, voltarei para comentar detalhadamente o “ensaio” do professor Jean Michel sobre as 13 teses, ou seja, o tal ”descasque das 13 Teses”, da terceira parte do seu recente livro, mas, posso antecipar desde já que, no final deste seu livro, e fazendo um juízo de intenções, pois já o li todo, a ideia que se pretende passar é a de que, Nito Alves, era um presunçoso campónio, radical quadrado, ao serviço das elites, sem capacidade para assimilar convenientemente os clássicos do Marxismo-Leninismo, por supostas leituras apressadas, e que, por messianismo e infantilismo ousou desafiar o grande histórico fundador Lúcio Lara. O professor não o disse assim? Talvez eu o tenha percebido mal.
José Fuso
17 de Outubro de 2023
in Novo Jornal
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